terça-feira, 12 de novembro de 2024

AS FÁBULAS E AS CIDADES

Marcio Junior*, Voto Positivo 

A fábula como ilustração da casa comum e o legado para os que virão

Pedrinho sonhou. Sonhou que estava sentado numa pedra, com os olhos nos carneiros do rebanho. Súbito, foram se sumindo os carneiros e apareceu uma estrada que ia perder-se nas montanhas azuis. Um vulto vinha vindo pela estrada. Um homem... Um velho de andar trôpego...

O velho chegou e sentou-se na pedra.

− É daqui? – Perguntou Pedrinho.

− Sou de todos os lugares e todos os tempos. Sou a história.

Pedrinho encarou-o, surpreso. O velho não era mais o velho, sim uma deidade semelhante a certa figura feminina que ele vira no Partenão, com a cara de musa.

Monteiro Lobato. O Minotauro. P. 106.

Não é preciso procura exaustiva para percebermos que estamos lendo mal; a Progress in International Reading Literacy Study (Estudo Internacional de Progresso em Leitura) - PIRLS 2021 demonstrou que há uma dificuldade das nossas crianças em ler e interpretar textos, sejam eles informativos ou literários, e que essa dificuldade atinge não só um grande número de crianças, sendo apenas um pequeno número delas as que conseguem ler, no 4° ano do Ensino Fundamental, de forma minimamente satisfatória e que vai proporcionar base para aprender, ao longo do tempo, por meio de textos.

Como ninguém nasce sabendo, a sugestão óbvia é que os problemas que nos levaram a esse quadro estão mais nos que são responsáveis por ensiná-las do que nas próprias crianças. Isso significa que a solução é complexa, difícil e demorada, pois demanda que pais, professores, governos e não só ajam em favor da necessária refundação educacional. Será que somente a recondução das crianças à escola, nem sempre feita, após o fim da emergência de saúde pública da COVID-19 foi suficiente? E os anos "perdidos"?

Essa breve exposição do atual quadro educacional mostra que tanto o problema quanto as suas consequências só são possíveis de compreender, mensurar e tentar resolver na medida em que ele é posto como de fato é: em vários aspectos muito mais longo do que o presente e muito mais amplo do que o Brasil, que, mesmo dotado de particularidades tanto vantajosas quanto desvantajosas, apresenta sintomas que são, além de globais, também uma demonstração do esgotamento do contrato social da educação cuja pedagogia filosófica se apoiava na experiência das luzes do século XVIII.

É nesse contexto (assim como também com a entrada em cartaz de Gladiador 2) que Megalópolis, filme independente do octogenário Francis Ford Coppola, pai, avô e bisavô, nos brinda com a fábula novaiorquina/romana da casa comum. O gênero literário, transposto para o audiovisual de forma quase artesanal, permite a liberdade de nomear ludicamente seus personagens como alguns personagens da antiguidade, falando a partir de um país já nascido republicano, mas sem deixar de beber de experiências que conheceram a monarquia, como nós.

Nessa Nova Roma em cuja luxúria é, também, meio da juventude ganhar a vida como se Vênus fosse exposta no Onlyfans, o mal-estar civilizacional está instalado sem a capacidade das forças responderem à altura, na medida em que pouco conseguem unir, entre muitas coisas, a capacidade responsiva da boa ciência, de boa leitura do mundo, para os problemas contemporâneos, com a institucionalidade política republicana e democrática "embebida" de interesses diversos.

Assim, não deixa de ser um convite para a reflexão, daqui desta terra, tendo o novo filme como um insight lobatiano que convoca o Tempo de Nero a partir de uma chave interpretativa mais próxima d'O Presidente Negro, tornando o herói, apesar de descrito como um arquiteto vencedor do Nobel de Física, também um historiador que tem diálogo fértil com o iberismo de um Padre Antônio Vieira e a sua História do Futuro.

Robert Darnton, ao revisitar o século XVIII, reparou que a novidade dos intelectuais deste tempo estava na possibilidade de discutir e impor um programa com maior grau de autonomia, o que diferenciou os philosophers e seu engagement dos intelectuais anteriores, tornando-os um novo tipo social. Com o esvaziamento da educação de parte considerável deste compromisso que é, também, histórico, as gerações estão e seguirão ao relento da incapacidade também de se descolar da realidade material com competência, dando asas à fabulações em detrimento da boa fábula. É marca de boa literatura conter “verdade nas mentiras”, e caminhar por entre as abstrações da imaginação exige orientação professoral, do contrário não há guarda corpo para a proteção ao "limbo" da ignorância que em nada ajuda o debate sobre um futuro mais sustentável sobre a nossa casa comum.

*Doutorando pelo CPDA/UFRRJ

Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário