A história se repete, como tragédia ou farsa, e os fatos
do passado influenciam as ações humanas no presente
“Hegel observa em alguma obra que todos os fatos e
personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim
dizer, duas vezes”, escreveu Karl Marx, na introdução de “O Dezoito de Brumário
de Luís Bonaparte”. E completou: “A primeira vez como tragédia, a segunda como
farsa”.
Na obra de 1852, o pensador alemão analisa o “autogolpe” de
Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte. Luís Bonaparte havia sido eleito
presidente da França pelo voto popular em 1848, derrubando a monarquia, e
instaurando a segunda República naquele país.
Diante da proibição da lei eleitoral para concorrer a um
novo mandato, deu um golpe em 1851 para continuar no poder e se autoproclamou
imperador, como o tio. Segundo Marx, Luís Bonaparte inspirou-se na biografia do
tio célebre, que liderou tropas militares para derrubar a primeira República
francesa, inaugurada com a Revolução de 1789, sob as palavras de ordem
“liberdade, igualdade e fraternidade”.
A reedição da história, na forma de
tragédia ou farsa, não é exclusividade dos franceses. Golpes de Estado e
regimes autoritários, breves ou longevos, passados ou contemporâneos, inundam a
história universal.
Neste momento, porém, a reflexão de Marx dialoga com a
realidade brasileira face à revelação nesta semana, em detalhado inquérito da
Polícia Federal (PF), de uma tentativa de golpe de Estado no Brasil para que o
ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu grupo político permanecessem no poder.
Bolsonaro e os demais 36 indiciados negam a intentona, que a
PF sustenta com base em um inquérito de 884 páginas, com dezenas de áudios,
reproduções de mensagens de celular, documentos, entre outras provas.
Aguarda-se a Procuradoria-Geral da República (PGR), a quem caberá a eventual
denúncia dos investigados.
O relatório da PF revelou que alguns indiciados aludiram à
repetição dos fatos históricos, evocando, em mensagens, o golpe militar de
1964, do qual Bolsonaro sempre foi defensor. Em uma mensagem recuperada pela
PF, o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente - e que
assinou colaboração premiada -, reclamou: “Em 64, não precisou ninguém assinar
nada”.
Além do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do
vice-presidente Geraldo Alckmin, outro alvo da trama atual era o Supremo
Tribunal Federal (STF), instituição que também esteve na mira do regime
militar.
Cerca de um ano após a deposição do presidente João Goulart,
os militares editaram o Ato Institucional (AI) 2, que aumentou o número de
ministros da Corte de 11 para 16, a fim de indicarem magistrados simpáticos ao
regime para o tribunal.
Já em 1968, com o AI-5, a ditadura aposentou
compulsoriamente três ministros, que geravam desconfiança no governo: Hermes
Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal.
Antes de ingressar no STF, Hermes Lima teve uma ampla
trajetória política, como fundador do PSB, deputado federal, e no período do
parlamentarismo, em 1962, foi presidente do Conselho de Ministros. No
Executivo, foi ministro do Trabalho e das Relações Exteriores de Jango.
Eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL), Lima
tomou posse dias depois de ser afastado pelos militares do STF. Em entrevista
ao repórter Joel Silveira, em 1978, relembrou que sua posse na ABL foi
carregada de tensão. “Havia um detalhe inédito em solenidades de posse; lá
fora, se postava um carro do DOPS [polícia do regime] cheio de policiais, e
vários deles presenciaram a solenidade”, relatou, revelando que continuou sendo
vigiado, mesmo fora do tribunal.
Os outros ministros cassados também foram escritores e
juristas de renome. Victor Nunes Leal é o autor de “Coronelismo, enxada e
voto”, clássico da ciência política, publicado em 1948, com prefácio de Barbosa
Lima Sobrinho. Na breve trajetória política, foi amigo e chefe da Casa Civil do
presidente Juscelino Kubitschek.
Evandro Lins e Silva sucedeu a Hermes Lima como chanceler de
João Goulart, e foi chefe da Casa Civil do mesmo governo. Assim como Lima, foi
imortal da ABL. Criminalista renomado, atuante na área de direitos humanos, foi
um dos autores do pedido de impeachment de Fernando Collor de Mello.
No passado, a turbulência do STF com os militares começou
com as concessões de habeas corpus para políticos que
desafiaram o regime, como os governadores de Goiás, Mauro Borges, e de
Pernambuco, Miguel Arraes.
Voltando aos dias atuais, o relatório da PF denunciou um
plano para tirar a vida do ministro Alexandre de Moraes, do presidente Lula e
do vice Geraldo Alckmin, mas registrou que a trama também mirava outros
integrantes do Supremo.
A conclusão dos investigadores foi de que os indiciados
queriam prender “juízes supremos considerados geradores de instabilidade”. Uma
minuta de golpe encontrada pela PF em atos de busca e apreensão, em fevereiro
deste ano, revelou que os golpistas planejavam as prisões de Moraes e do
ministro Gilmar Mendes.
A história se repete, como tragédia ou farsa, e os fatos do
passado influenciam as ações humanas no presente. Segundo Marx, na mesma
reflexão sobre o golpe de Napoleão III, “os seres humanos fazem sua própria
história, mas não a fazem de livre vontade; não sob circunstâncias de sua
escolha, e sim, sob aquelas existentes, dadas e herdadas do passado”.
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