sexta-feira, 29 de novembro de 2024

PEC RETRÓGRADA COLOCA EM RISCO O DIREITO AO ABORTO LEGAL

Editorial Folha de S. Paulo

Proposta pode vir a proibir procedimento, igualando a lei do Brasil à de teocracias; Congresso precisa seguir evidências

Na quarta-feira (27), a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados deu aval a uma proposta sombria de emenda à Constituição que, se aprovada, poderia tirar de gestantes brasileiras o direito ao aborto até em casos de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia fetal.

O objetivo é alterar o artigo 5º da Carta, de "garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida" para "direito à vida desde a concepção".

Tal acréscimo é temerário pois, embora não mude o Código Penal, serviria para questionar a constitucionalidade do aborto, gerando insegurança jurídica.

Os deputados se arvoram, com mero subterfúgio retórico, a estabelecer o início da vida humana quando não há consenso robusto entre especialistas sobre o tema. Nos países que legalizaram a interrupção da gravidez, os limites variam entre 12 e 20 semanas.

No mundo, cerca de 60% das mulheres em idade reprodutiva moram em locais onde podem realizar o procedimento sem medo de punição pelo Estado. Só 16 nações, a maioria pobres ou sob regimes autoritários, o criminalizam em qualquer caso, como EgitoIraqueNicarágua e Haiti.

OMS estima que entre 4,7% e 13,2% das mortes de grávidas no mundo são causadas por abortos inseguros —que aumentam com a ilegalidade ou difícil acesso. Países de baixa renda concentram 97% dessas práticas, e 3 de 4 interrupções são inseguras na América Latina. Mulheres e meninas pobres são as mais atingidas.

A proposta não é a única investida contra o aborto legal. Em junho, a Câmara aprovou requerimento de urgência para um projeto de lei tresloucado que equipara a pena para aborto após a 22ª semana com a de homicídio, mesmo nas situações permitidas pelo Código Penal, que não estipula limite de tempo da gestação.

Cerca de um terço dos procedimentos ocorre após esse período no Brasil, notadamente em caso de menores de idade e mulheres que vivem longe dos grandes centros e têm acesso precário à rede pública de saúde. Os 290 estabelecimentos que realizavam aborto legal no país em 2021 estavam em somente 3,6% dos municípios.

Segundo pesquisa do Datafolha deste ano, 58% dos brasileiros são contra proibir o aborto em qualquer situação: 34% apoiam a legislação atual, 17% defendem a ampliação de casos permitidos e 7% apoiam a legalização ampla.

O avanço do Legislativo contra esse direito reprodutivo tem base religiosa. Num Estado laico, não é a fé que deve pautar políticas públicas, mas evidências.

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