Proposta pode vir a proibir procedimento, igualando a lei
do Brasil à de teocracias; Congresso precisa seguir evidências
Na quarta-feira (27), a Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara
dos Deputados deu aval a uma proposta sombria de emenda à Constituição
que, se aprovada, poderia tirar de gestantes brasileiras o direito ao aborto até
em casos de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia fetal.
O
objetivo é alterar o artigo 5º da Carta, de "garantindo-se aos
brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à
vida" para "direito à vida desde a concepção".
Tal acréscimo é temerário pois, embora não mude o Código
Penal, serviria para questionar a constitucionalidade do aborto, gerando
insegurança jurídica.
Os deputados se arvoram, com mero subterfúgio retórico, a
estabelecer o início da vida humana quando não há consenso robusto entre
especialistas sobre o tema. Nos países que legalizaram a interrupção da
gravidez, os limites variam entre 12 e 20 semanas.
No mundo, cerca de 60% das mulheres em idade reprodutiva
moram em locais onde podem realizar o procedimento sem medo de punição pelo
Estado. Só 16 nações, a maioria pobres ou sob regimes autoritários, o
criminalizam em qualquer caso, como Egito, Iraque, Nicarágua e Haiti.
A OMS estima que
entre 4,7%
e 13,2% das mortes de grávidas no mundo são causadas por abortos inseguros —que
aumentam com a ilegalidade ou difícil acesso. Países de baixa renda concentram
97% dessas práticas, e 3 de 4 interrupções são inseguras na América
Latina. Mulheres e meninas pobres são as mais atingidas.
A proposta não é a única investida contra o aborto legal. Em
junho, a Câmara aprovou requerimento de urgência para um projeto de lei
tresloucado que equipara a pena para aborto após a 22ª semana com a de
homicídio, mesmo nas situações permitidas pelo Código Penal, que não estipula
limite de tempo da gestação.
Cerca de um terço dos procedimentos ocorre após esse período
no Brasil, notadamente em caso de menores de idade e mulheres que vivem longe
dos grandes centros e têm acesso precário à rede pública de saúde. Os 290
estabelecimentos que realizavam aborto legal no país em 2021 estavam em somente
3,6% dos municípios.
Segundo pesquisa do Datafolha deste
ano, 58%
dos brasileiros são contra proibir o aborto em qualquer situação: 34%
apoiam a legislação atual, 17% defendem a ampliação de casos permitidos e 7%
apoiam a legalização ampla.
O avanço do Legislativo contra esse direito reprodutivo tem
base religiosa. Num Estado laico, não é a fé que deve pautar políticas
públicas, mas evidências.
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