O saudoso cientista político norte-americano Ronald
Inglehart (1934-2021) não se enganou quando chamou o século XXI da era das
reações, da desconfiança (como também aponta Pierre Rosanvallon), da dissolução
dos laços e tecidos sociais que são, juntamente com o respeito pelas regras,
tanto por parte dos cidadãos como por aqueles que exercem o poder, a base da
coexistência democrática. A vitória clara, embora não esmagadora, de Donald
Trump nas eleições norte-americanas é a confirmação disso.
O que torna a nação mais avançada do mundo em termos
econômicos, com a democracia moderna mais antiga do planeta, imperfeita desde a
sua criação até hoje, na vanguarda da ciência e da tecnologia, das artes e da
cultura popular, polo de atração para aqueles que sonham em mudar seus destinos
pessoais, faz seus cidadãos votar em Donald Trump? É um enigma difícil de
desvendar pela razão.
É claro que o mundo atravessa momentos
difíceis, o poder dos EUA está sendo desafiado por enormes nações-continentes
que abandonaram o seu atraso para avançar com extrema rapidez, como a China e a
Índia, cada uma à sua maneira. A Rússia, na forma de uma postura combativa
anacrônica, não se resigna ao lugar que lhe é atribuído pela sua situação atual
depois de ter sido uma superpotência, e a Europa fica enfraquecida como sua
aliada tradicional. Há duas guerras acontecendo no mundo e elas podem se
espalhar.
É também verdade que a crise do sistema democrático na
grande transição da sociedade moderna para a sociedade hipermoderna enfraqueceu
a legitimidade dos EUA como uma grande potência devido à magnitude das suas
divisões internas. Mas alguém poderá perguntar-se por que razão, face à
terrível crise da década de 1930 no século passado e à ascensão do fascismo e
do nazismo, quando os seus alicerces foram abalados, foi Franklin Delano
Roosevelt (1882-1945) quem foi ungido pelo povo para reconfigurar a democracia
e sair do pântano econômico, ajudando a salvar a humanidade do mal absoluto
juntamente com os seus aliados através de um esforço de solidariedade e
respeito pela liberdade, e hoje quando a dimensão de tal catástrofe não existe,
se vota numa figura que encarna o seu oposto.
Resposta difícil, a escolha por Donald Trump pois foi muito
mais do que as escolhas entre o que se ofertou nas geografias políticas nas
eleições planetárias de 2024 como direitas e centro-esquerdas, entre os
republicanismos clássicos e democratas, ou entre diferentes visões sobre os
desafios do desenvolvimento.
Foi uma escolha por um sentimento, nacionalista e
supremacista, que abomina os pluralismos. Esse triunfo foi movido pelo medo
como indicou o filosofo coreano quase crioulo alemão Byung-Chul Han. A
democracia é mais fraca no mundo hoje.
Os EUA têm muitos problemas, tal como o resto do mundo, a
diferença é que os seus problemas têm uma influência decisiva na humanidade. A
decisão que tomaram afetará a todos nós. O absurdo é que esta decisão não se
baseia na realidade, mas na percepção exagerada, histérica e manipulada dessa
realidade. O governo de Joe Biden não foi um mau governo, não só executou
medidas sociais importantes, como corrigiu o péssimo desempenho do próprio
Trump em relação à pandemia e fez o PIB crescer além das expectativas. Mas isto
contou menos para as classes norte-americanas do que a inflação e o aumento do
custo de vida, que, juntamente com o medo da imigração ilegal baseado na
identidade e no identitarismo, foi usado por Trump de uma forma caricatural,
mas eficaz.
Surgirão estudos e análises com mais elementos científicos
que analisarão por que as coisas aconteceram dessa maneira. Por que um homem
que criou um governo medíocre como Trump, que isolou os EUA, cuja ficha
criminal faz parte de sua biografia, com posições de extrema direita e
admirador de déspotas, foi escolhido para liderar a primeira potência mundial
nos anos O que as eleitoras e eleitores estão vendo? Será a herança histórica
institucional dos Estados Unidos suficiente para limitá-la e contê-la? Como na
clássica frase de Alexis de Tocqueville (1805-1859): Os povos sempre se
ressentem de suas origens. Estas são questões ainda sem resposta.
E como o mesmo Tocqueville observou nos primeiros
anos do século XIX: “É mais fácil para o mundo aceitar uma mentira simples do
que uma verdade complexa.”
É nesta área que os apoiantes da democracia nos EUA e no
planeta terão de trabalhar arduamente. Em tempos de mudanças e alterações
climáticas, de Organização Mundial do Comércio se preparando frente as
pandemias, transferências de tecnologias, reforços do multilateralismo
eficiente e promoção da democracia, haverá mais lágrimas do que contentamento.
*Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e
professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do
Instituto Devecchi.
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