Conseguiremos alinhar rigor e equilíbrio ao punir golpismo?
O STF tem nas mãos uma grande responsabilidade
A decisão do Supremo e dois relatórios da Polícia
Federal sinalizam o fim da longa investigação sobre os “atos
golpistas”. Finalmente podemos ter uma visão um pouco mais clara do que
aconteceu nas altas esferas do poder em Brasília e
do papel desempenhado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro entre o final de 2022 e
o começo de 2023.
O quadro geral que vemos é de inconformismo com o resultado
das urnas e de grande movimentação para reverter a eleição de Lula.
Não houve uma única tentativa de golpe, mas diversas movimentações golpistas,
em paralelo, algumas mais violentas, outras se esforçando para conferir
aparência de institucionalidade. Não fica claro se elas chegaram a ser
integradas num plano só nem de que maneira se conectam com o que aconteceu
depois, no 8 de Janeiro. Quase todas as tramas envolveram Mauro Cid, o
ajudante de ordens de Bolsonaro. Informá-lo e envolvê-lo era chave, porque
significava informar o presidente indiretamente, sem comprometê-lo diretamente.
Há várias linhas de ação identificadas pela
PF que não sabemos exatamente como se encaixam. O monitoramento da movimentação
do ministro Alexandre
de Moraes e o plano de prendê-lo no dia 15 de dezembro estavam
subordinados à linha de ação proposta na minuta do golpe? Ou era uma ação
clandestina, paralela — talvez para executar Moraes? E por que foi abortada no
dia da execução?
Se nenhum fato novo importante surgir, a defesa de Bolsonaro
já está estruturada. Juridicamente, ele alegará que não sabia das movimentações
mais violentas, como a tentativa de envenenar Lula, Geraldo
Alckmin e Moraes. Caso surjam indícios de seu envolvimento, a
estratégia será tratar essas ações como meras especulações ou cogitações, um
estágio anterior à tentativa e, portanto, não passível de punição. Em paralelo,
no debate público, seus apoiadores disseminarão a interpretação de que todos
esses planos golpistas não foram adiante porque Bolsonaro não deu sinal verde
para eles, segurando os radicais. O ex-presidente será apresentado não apenas
como alguém que não conspirou contra a democracia, mas como alguém que, de
fato, a preservou.
Será diferente na acusação envolvendo o documento conhecido
como “minuta do golpe”. As digitais de Bolsonaro sobre ela estão por toda
parte, seu envolvimento é corroborado por vários testemunhos. O ex-presidente
alegará que, também aí, tudo não passou de especulação e que, ao fim e ao cabo,
mesmo essas especulações (sobre Estado de sítio) tratavam de uma hipótese
prevista no texto constitucional, jogada “dentro das quatro linhas”. Isso
dificilmente se sustentará no julgamento no STF,
mas poderá se sustentar no julgamento da opinião pública — pelo menos entre
seus apoiadores.
Nos próximos meses, discutiremos infinitamente as nuances
jurídicas que separam atos preparatórios, tentativa e execução de crimes — e de
que maneira essa separação se aplica aos crimes contra a democracia que punem a
mera tentativa. Nessa longa jornada de debates junto à opinião pública, os
defensores da democracia precisam sempre se lembrar de que estamos diante de
uma dupla missão: condenar ataques ao regime democrático, mas com o
entendimento sempre presente de que os crimes foram cometidos por agentes que
têm confiança de parcela importante da cidadania. O momento exige cuidado e
equilíbrio. O desafio é ainda maior para a Justiça.
O STF tem nas mãos uma grande responsabilidade. Por um lado,
tem a obrigação política de punir o golpismo com rigor, porque nossa democracia
não ficará de pé se atos dessa gravidade ficarem impunes ou forem imediatamente
anistiados. Por outro, precisa fazer isso de maneira serena, técnica e
equilibrada, desfazendo a imagem que projetou para metade do eleitorado de ser
uma Justiça com lado. Precisa cumprir um dever político de maneira técnica e
punir com rigor, de forma equilibrada. Será que a Justiça brasileira estará à
altura da missão?
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