O mundo avançou, e os golpistas recuaram no tempo, não
chegam aos pés de seus antecessores do século passado
Presenciei dois golpes militares no século XX. Primeiro foi
no Brasil; nove anos depois, no Chile. Traços comuns:
ocupação de pontos estratégicos, deslocamento de tropas, prisões em massa. Não
houve planos de assassinato do governante deposto, embora Allende tenha morrido
resistindo no Palácio de La Moneda.
No século XXI, os golpes de Estado tomaram outra forma. Há
uma batelada de livros descrevendo-os. Agora, a democracia é devorada por
dentro. O Poder Executivo aos poucos neutraliza Congresso e Judiciário e passa
a mandar sozinho. É possível ver mais ou menos isso na Hungria ou
na Venezuela.
O plano de golpe revelado na semana passada pela Polícia
Federal representa um brutal retrocesso. Ele começaria com a morte do
ministro Alexandre
de Moraes, de Lula e Geraldo
Alckmin. Teria características do século XIX, assim mesmo em países muito
atrasados. Isso revela que o mundo avançou, e os golpistas, criando uma
situação grotesca, recuaram no tempo, não chegam aos pés de seus antecessores
do século passado.
Apesar da condenação inequívoca, seria
interessante conhecer mais detalhes para contar a história. Há pontos ainda
obscuros. O projeto era matar e envenenar. Matar a tiros — usando fuzis,
pistolas e até um lança-granadas — é uma coisa. Envenenar é outra, em termos de
planejamento. Você não lança uma granada envenenada; de um modo geral, usa
outros métodos. A mais avançada prática no mundo talvez seja a da Rússia. Um simples
chá pode destruir o oposicionista. Tanto o polônio-210 quanto o tálio são muito
usados pela polícia política de Putin. Eis a pergunta sobre o envenenamento:
qual era o plano, qual sua viabilidade no tempo escolhido, o mês antes da
posse?
Não tivemos acesso ao esquema completo, escrito pelo general
Mário Fernandes. Foram divulgadas apenas algumas de suas mensagens. Nelas, ele
repete a palavra “porra” 53 vezes. Se continuasse produzindo textos, acabaria
aumentando o índice de natalidade nacional.
Também não ficou claro como seria o assassinato de Moraes.
Houve um olheiro colocado perto do restaurante Gibão, especializado em carne de
sol. Ele reclama de falta de táxi; parece que esqueceram que não se pegam táxis
na rua em Brasília. É preciso telefonar. O agente era Gana, os outros
eram Áustria, Japão, Brasil, nomes
de países. Creio que se inspiraram na série “Casa de Papel”, onde se usavam
nomes de cidades: Paris, Tóquio.
As armas mencionadas ainda não apareceram. Eram fuzis
pistolas, lança-granadas e uma bazuca. É um arsenal considerável. Como se
encaixa no planejamento? Se usassem tudo, matariam ministro, motorista,
segurança e eventualmente algum adepto de carne de sol próximo ao restaurante
Gibão.
À medida que as investigações avançam, creio que algumas
dúvidas serão esclarecidas para que se possa montar uma história mais
detalhada. Há coisas que só alguém pensando no futuro roteiro pode perguntar.
Por exemplo: você envenenaria o presidente e o vice ao mesmo tempo? Caso
houvesse espaço entre um e outro, não seria possível que o sobrevivente
desconfiasse e tomasse precauções?
Só o general no seu labirinto poderia responder a essas
perguntas. Certamente diria:
— Não me venha com detalhes, porra.
Mas o trabalho da PF continua, desvendando toda a trama,
encontrando o escalão superior do golpe e criando as condições para que se
conte a história de forma precisa.
A serie televisiva espera Gana, Áustria, Japão, Brasil, com
a mesma atenção que deu a Paris, Tóquio, Londres, na “Casa
de Papel”.
Artigo publicado no jornal O Globo em 25/11/2024
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