A ascensão dos populismos parece confirmar o mal-estar
das democracias. Mas as taxas surpreendentes de alternância de poder sugerem
que eleitores estão se mobilizando para saná-las
Em 2024, mais de 70 países que abrigam metade da população
mundial promoveram eleições envolvendo cerca de 2 bilhões de eleitores. Esse
superciclo foi descrito como o maior ano eleitoral da história e um grande
teste de nervos para a democracia. Qual o resultado?
Abstraídos os regimes autocráticos como Rússia e Venezuela,
a tendência mais generalizada que emergiu das urnas foi o repúdio aos
incumbentes. Em geral, ou eles perderam o poder (como nos EUA, Reino Unido,
Coreia do Sul, Portugal, Uruguai e Botswana) ou sofreram reveses significativos
(França, Índia, Japão e África do Sul).
Uma possível razão é circunstancial. A pandemia passou, mas
a ruptura nas cadeias de fornecimento e seu impacto inflacionário continuam a
reverberar. Ao mesmo tempo, a turbulência econômica parece alimentar um
mal-estar político crônico. Os eleitores estão frustrados com o funcionamento
de suas democracias e impacientes com seus líderes e instituições.
Essa irritação parece estar relacionada a outra tendência,
particularmente nas democracias ocidentais: a ascensão de partidos populistas
de direita. Nos últimos anos, esses partidos ganharam posições em países como
França, Alemanha, Itália, Áustria, Portugal e Holanda, além do Parlamento
Europeu. Mesmo no Reino Unido, apesar da vitória dos trabalhistas, o partido
nativista Reform UK teve ganhos substanciais. A direita populista é uma força
consolidada na Europa. Se lá ela é abastecida por apreensões com a imigração,
na América Latina é mais eclética. Mas há temas comuns a figuras como Javier
Milei na Argentina ou Nayib Bukele em El Salvador, como a oposição ao aborto ou
à ideologia de gênero e, sobretudo, a linha-dura contra o crime.
O México é a exceção que confirma a regra, ao menos
parcialmente: o partido Morena é populista, mas de esquerda, e, dentre todas as
grandes economias, foi a única em que os incumbentes ampliaram seu poder.
Já os EUA materializam a regra. O Partido Republicano,
dominado pelo populismo conservador de Donald Trump, conquistou a presidência e
as duas Casas legislativas. As eleições nos EUA ilustram outro traço peculiar
do ciclo de 2024: uma maior relevância da geopolítica. Na Europa, o conflito na
Ucrânia é prioritário nas escolhas eleitorais. Nos EUA, o apoio a Kiev causa
divisões entre os republicanos, tal como o apoio a Israel causa divisões entre
os democratas. Os EUA também exemplificam o aprofundamento de divergências
políticas sobre cultura, ideologia e identidade.
Quanto ao Brasil, as duas tendências dominantes – a
impaciência com os incumbentes e o robustecimento da direita populista –
sugerem adversidades para o presidente Lula em 2026. Mas o que elas revelam
sobre o “teste de estresse” da democracia global?
A difusão populista parece confirmar a “recessão da
democracia” para a qual alertam organizações dedicadas a mensurar instituições
democráticas e liberdades civis. Por outro lado, o traço mais universal e
objetivo do ciclo de 2024, o repúdio aos incumbentes, permite relativizar essa
percepção. Afinal, se o mundo experimenta uma onda de populismo de tendência
autocrática, a consequência seria uma taxa crescente de vitórias dos
incumbentes, que teoricamente dominam a máquina estatal e o discurso político.
Mas o que se viu foi o oposto: alternância de poder generalizada.
Somem-se a isso outros indicadores de vigor democrático: as
taxas de comparecimento às urnas aumentaram, protestos violentos diminuíram e
campanhas de desinformação tiveram, tudo indica, efeitos marginais. Em Taiwan e
na Moldávia, por exemplo, candidatos que enfrentaram as duas máquinas de
desinformação mais formidáveis do planeta, as autocracias chinesa e russa,
venceram.
Seria irresponsável negligenciar sintomas de erosão
democrática. Episódios como a ascensão da extrema direita filonazista na
Alemanha ou o assalto ao Capitólio nos EUA seriam impensáveis há 15 anos. Mas
as taxas de alternância de poder revelam um grau substantivo de competitividade
nas eleições. As democracias podem viver um momento de mal-estar, mas enquanto
se mantiverem abertas à competição os cidadãos terão nas mãos o remédio para
saná-las.
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