Nas últimas três décadas, as autocracias transformaram-se
em regimes democráticos melhores do que os que as precederam
Ao longo dos oito anos em que venho atuando como colunista
aqui na Folha critiquei análises sobre crises e ameaças à democracia bem como
índices de qualidade da democracia produzidos pelo VDEM
e Freedom House. É reconfortante saber que estas instituições reconheceram
as insuficiências apontadas por muitos analistas. A ideia
de uma "recessão democrática" no mundo foi em parte produto
da ascensão de Trump em 2016. Sua reeleição, em 2024, tem efeito similar,
magnificando simbolicamente a narrativa de uma crise global da democracia. Já
houve vieses no sentido contrário: quando a Argentina saía do regime militar e
Menem, que havia sido encarcerado pelo regime, assumiu o poder, não se detectou
nenhum retrocesso nos índices em seu mandato; Menem, no entanto, aumentou o
número de juízes da Suprema Corte de 5 para 9, garantindo de imediato maioria
na casa. Conscientes ou não, os analistas "torciam" para que a
transição desse certo.
Há pelo menos três equívocos nestes
debates. O primeiro é o não reconhecimento de que a autocratização não é
inexorável e os casos de reversão são mais frequentes do que os de entronização
de regimes. O VDEM finalmente acaba de produzir um mea culpa sobre este ponto,
que foi objeto de críticas de vários analistas. Segundo o instituto, desde
1900, 48% dos casos de autocratização (U-turns) são revertidos. Mais
importante: nos últimos 30 anos, essa porcentagem sobe para 70%. E o principal:
93% dessas reversões levaram a regimes com qualidade igual ou superior aos
regimes vigentes antes da autocratização. Se há uma tendência real, é a de
democratização.
O segundo reconhecimento pelo VDEM é o de que a piora dos
índices reflete o fato de que nas três últimas décadas a democracia estendeu-se
a "lugares difíceis", onde a probabilidade de reversão seria muito
maior. São países muito pobres e/ou onde nunca houve regime representativo. Por
construção, portanto, tem havido mais países piorando do que melhorando
índices. Daí a curva de sino (bell curve) nos índices de lugares difíceis.
Segundo o VDEM, a expressão "autocratização"
denota decréscimos no índice de qualidade da democracia independentemente do
seu nível. Assim quando o escore de países como Noruega ou Dinamarca —ou Belarus e Nicarágua—
declinam, conclui-se que estão se "autocratizando". O resultado é uma
inflação de casos de autocratização. O termo também é inadequado por sugerir
governo de um único indivíduo. Há também o problema simétrico: que a elevação
do escore em não democracias, quando passam de tiranias personalistas para
autocracias modernas e burocratizadas (ex. China), significa que estaria
ocorrendo democratização, mesmo que essa mudança leve à probabilidades
decrescentes de mudança nos regimes.
Um terceiro equívoco diz respeito a um possível viés
subjetivo na codificação e comparabilidade. No caso do VDEM, malgrado a
excelência técnica de seus pesquisadores e codificadores nos diversos países,
eles produzem disparates. O que, reconheço, são inevitáveis dado a magnitude da
tarefa envolvida. Em seu relatório de 2023, chega-se à uma conclusão
inteiramente implausível: que o Canadá e Portugal haviam
deixados de ser democracias liberais. Em seu relatório de 2024, não houve
registro de anomalias como essa.
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