sábado, 28 de dezembro de 2024

OS DEMÔNIOS DA SEGUNDA METADE DO GOVERNO LULA

Fernando de la Cuadra, Democracia Política

No próximo dia 1º de janeiro, o presidente Lula da Silva inicia a segunda metade de seu mandato de quatro anos, num cenário marcado por fantasmas e adversidades que se instalam sobre o governo. No plano interno, o Executivo terá que enfrentar um Congresso hostil e ressentido, principalmente agora que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, sancionou o bloqueio de 4,2 bilhões de reais (US$ 660 milhões) das alterações parlamentares das comissões e da investigação da Polícia Federal sobre o possível uso fraudulento desses recursos.

A questão problemática dessas emendas é que 40% delas beneficiariam o Estado de Alagoas, pátria e reduto eleitoral do atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Como apontamos em artigos anteriores, Lira atua como um ilustre chefe da máfia desde seu cargo, distribuindo recursos e influência dentro do Congresso e chantageando o governo com o poder que detém sobre a maioria dos deputados do chamado Centrão.

A intenção de Lira e seus capangas parlamentares sempre foi que os recursos obtidos por meio de emendas fizessem parte do orçamento secreto, ou seja, que os parlamentares não tivessem a obrigação de informar quem liberou os gastos, para quem e em que atividade ou trabalho esses quantias foram usadas. Uma verdadeira caixa preta do destino do dinheiro público. Como o governo se encontra em situação de fragilidade para confrontar os parlamentares e seus grupos de interesse, cabe ao STF zelar pelo uso adequado dos bens públicos, assegurando que tais recursos atendam à exigência de transparência e rastreabilidade. Por isso, os ilustres parlamentares acusam o governo central de conluio com o Judiciário para dificultar a atuação de deputados e senadores. Diante disso, ameaçam boicotar as próximas votações de extrema importância para o Executivo, como, por exemplo, a aprovação da Lei Orçamentária Anual.

A discórdia entre o atual parlamento e o governo é reforçada pelo clima beligerante alimentado pelas forças de Bolsonaro e pelos setores de extrema direita. Falsamente, a imprensa tem se dedicado a chamar a atenção para a perigosa radicalização ou polarização do país, mas objetivamente os únicos setores que se radicalizaram nesta última década são os grupos de extrema direita brasileiros. Se, por um lado, a resposta intuitiva à crise é a construção de um clima de tolerância e de diálogo na sociedade que permita um debate pluralista e ponderado sobre os vários projectos em disputa, por outro lado, parece que a única forma de conter as ameaças dos grupos golpistas deveria ser a aplicação de sanções exemplares àqueles que promoveram ações conspiratórias conscientes para quebrar o Estado Democrático de Direito.

Aqueles que participaram das invasões às sedes dos Três Poderes em janeiro de 2023 têm solicitado a aplicação de anistia presidencial a todos os acusados ​​como um gesto do Executivo que ajuda a pacificação do país. Junto a isso, pedem perdão para anular a inelegibilidade do ex-presidente Bolsonaro, pensando em sua candidatura para as eleições de 2026. Ao mesmo tempo que apelam à compreensão do presidente Lula, conspiram simultaneamente em todas as áreas possíveis contra o governo federal, inclusive. responsabilizando-o por tragédias climáticas como as enchentes do Rio Grande do Sul ou os incêndios devastadores em São Paulo, Amazonas e Pantanal, quando a maior parte da incompetência observada nesses casos. São responsabilidade das administrações estaduais, controladas justamente por representantes da direita.

Porém, na área das políticas sociais e das ações de combate à pobreza, o saldo é negativo. A desigualdade e a exclusão continuam a ser um dos grandes problemas que se arrastam há décadas e a percentagem de famílias que vivem na pobreza continua a ser um desafio à democracia que a actual administração não conseguiu reverter. Os serviços públicos continuam numa situação deplorável e milhares de pessoas são condenadas anualmente à morte ou a uma vida de sofrimento devido à falta de cuidados adequados no sistema público de saúde. Doenças como a cólera, a febre amarela, a malária ou a dengue continuam a causar a morte de milhares de habitantes todos os anos. Somente no caso desta última doença, segundo dados do Ministério da Saúde, até o momento neste ano foram registrados 6.630.766 casos de dengue, dos quais quase 6 mil terminaram em óbitos confirmados e outros mil casos de óbitos em investigação. para confirmar a causa.

Para melhorar a vida das pessoas que mais precisam, o governo deve necessariamente aumentar seus gastos sociais, mas as barreiras impostas pelo Congresso com o argumento de que o equilíbrio fiscal é mantido inviabilizam qualquer decisão do Executivo que vise destinar mais recursos para programas sociais, sob ameaça de sofrer um processo de impeachment por irresponsabilidade no uso do dinheiro público, como aconteceu em 2016 com a presidente Dilma Rousseff.

O país também vive uma epidemia de violência, não só por parte de organizações criminosas de tráfico de droga e de milícias, mas também por parte de várias forças policiais que utilizam métodos horríveis e ilegais para confrontar os criminosos. Vários casos de assassinatos sumários perpetrados pelas “forças da ordem” chocaram os cidadãos deste país. Institutos e Centros de Estudos dedicados ao tema alertam que houve um aumento notável na letalidade policial neste ano, e em alguns estados aumentou 160 por cento, como é o caso de Mato Grosso do Sul. Outros estados com números alarmantes de execuções. são São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Distrito Federal. Para o especialista em segurança pública, José Vicente, isso é intolerável: “Sabemos que quando há um aumento dessa letalidade, muita coisa errada está acontecendo. É muito provável que pessoas tenham morrido sem ter que morrer nas mãos de agentes do Estado.”

Em relação à questão ambiental, o cenário é decepcionante. Embora o Brasil vá sediar a próxima Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas (COP 30), a ser realizada na cidade de Belém, Estado do Pará, em novembro de 2025, a ação governamental nesta área tem muitas tarefas pendentes. O descaso com as políticas de preservação e cuidado nos biomas brasileiros é especialmente grave, especialmente nos territórios do Cerrado, Pantanal, Amazonas e Mata Atlântica. Milhares de hectares de florestas são queimados ou destruídos todos os anos, sem que os órgãos de fiscalização e proteção consigam cumprir o seu papel, por diversos motivos: falta de funcionários para fiscalizar as áreas de risco, falta de recursos e infraestrutura para realizar o monitoramento ou conluio de funcionários com empresas florestais e empresários sem escrúpulos que realizam atividades criminosas nesses espaços. Desta forma, as queimadas, o desmatamento, o extrativismo ilegal, a poluição das águas e a depredação de ecossistemas valiosos fazem parte de uma constelação de problemas que comprometem seriamente as práticas de sustentabilidade prometidas no programa de Lula e na sua coligação de partidos.

No plano internacional, a reeleição de Trump e a ascensão de líderes de extrema direita em todo o mundo colocaram em alerta as autoridades governamentais e o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). A política externa brasileira sempre foi caracterizada pelo seu pragmatismo e neutralidade, mas as guerras e conflitos existentes em diversas regiões desafiam a capacidade de Lula de operar como um mediador eficaz no concerto global. É consenso entre os quadros diplomáticos que o Brasil não tem mais o destaque que já teve como nação capaz de participar de acordos para promover a paz na região e no planeta.

A conjugação de todos estes aspectos tem impedido Lula de aumentar ou mesmo manter a sua popularidade, que, embora não tenha caído drasticamente, não conseguiu estabilizar-se nos níveis que tinha no início do seu mandato. Portanto, o grande desafio da segunda metade de sua gestão será exorcizar esses e outros demônios que vêm se fortalecendo nos últimos dois anos. Se a tendência é que essas ameaças aumentem num futuro próximo, as chances de o atual presidente se tornar uma aposta certa nas próximas eleições para chefiar um quarto governo ficarão seriamente comprometidas ou diretamente anuladas.

Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário