sábado, 28 de dezembro de 2024

O CONVÍVIO PESSOAL ENSINA

Ivan Alves Filho, Democracia Política

Passei quase dez anos de minha vida fora do Brasil. Estou preparando um livro novo, intitulado provisoriamente ‘Em busca de um país’, sobre a minha formação e experiência como historiador e cidadão. Trata-se de um prolongamento, se posso dizer assim, ao livro ‘O historiador e o tapeceiro’, que lancei em 2015, pela Fundação Astrojildo Pereira.

As notas que se seguem são relativas ao meu encontro com pessoas no exterior.

No plano internacional, conheci figuras que muito me impressionaram também e poderia citar o antropólogo Claude Lévi-Strauss, o fotógrafo Henri Cartier-Bresson, o psiquiatra Tony Lainé, o estadista Nelson Mandela e o operário comunista Jacques Duclos, este último o líder da Resistência francesa à ocupação nazista de seu país. Nas eleições presidenciais de 1969, Duclos obteve quase 22% dos sufrágios. Respeitadíssimo na França, Jacques Duclos compôs, juntamente com Benoît Frachon e Charles Tillon, a direção clandestina do Partido Comunista Francês sob a ocupação hitlerista. Viveu quatro anos nos esgotos de Paris, sem praticamente ver a luz do dia. Frachon era o secretário-geral da CGT (Confederação geral do Trabalho) e Tillon o responsável pela guerrilha, o chefe dos partisans. Da Resistência ao ocupante nazista da França, conheci ainda Jean Favre, nascido no Vietnã e um dos três redatores do Programa Comum que levaria os comunistas, os socialistas e os radicais de esquerda (um partido de centro, apesar do nome) ao Governo. Além dele, possa citar o diretor do jornal do Partido Comunista Francês, L´Humanité, René Andrieu, um dos líderes dessa luta antifascista tão gloriosa, assim como o operário metalúrgico Roger Lainé, figura admirável. Certa vez eu perguntei ao René Andrieu para que me explicasse o fenômeno De Gaulle na França. Apesar de reconhecer seu importante papel na Resistência, Andrieu examinava o posicionamento do General De Gaulle sob a ótica, correta pelo que entendi, da política de classe da burguesia, que nunca colocava todos os ovos em um cesto só. A burguesia apoiou o Marechal Pétain, o colaboracionista de Hitler, mas mantinha um setor seu dialogando com De Gaulle, em Londres.

Com a saudosa amiga Julia, basca de Espanha, que passou dez anos nos cárceres franquistas, muito aprendi sobre a Guerra Civil em seu país, nos anos 30 do século XX. O mesmo digo de seu marido Marcelo, também ele prisioneiro de Francisco Franco. O militar espanhol poderia perfeitamente ser dicionarizado como sinônimo de repugnância. Julia e Marcelo estavam exilados em Ivry-sur-Seine, cidade onde eu morava, na chamada Cintura Vermelha de Paris. Quando Franco morreu, eu fui à sua casa, mas eu a encontrei muito triste e abalada. “Para além da morte dele, existem recordações terríveis daquela época. A morte de Francisco Franco remexe com as feridas ainda abertas na Espanha de hoje. Será uma transição difícil”. Entendi perfeitamente sua aflição.

O líder de uma outra Resistência, igualmente extraordinária, o comunista Malek Benayad, que se insurgiu contra o colonialismo francês na sua querida Argélia, também muito me impactou por sua dignidade e dedicação à causa da liberdade. Malek era saarauí, ou seja, um grupo étnico do deserto do Saara. As torturas que sofreu, nos diferentes cárceres por onde passou ao longo da vida, são indescritíveis. Foi uma das pessoas mais dignas que conheci na vida.

Outra figura que me impressionou muito foi o comunista egípcio Samir Amin, então presidente da Associação Internacional dos Sociólogos. Educadíssimo, muito culto, teve de deixar o Egito após asperseguições movidas contra ele pelo Governo Nasser, ainda nos anos 50, vivendo desde então no Senegal. Samir Amin deu uma contribuição importante ao marxismo, sobretudo no tocante ao papel das áreas periféricas, submetidas ao domínio do capital internacional.

No Uruguai, trabalhei um período na edição do Guia do Terceiro Mundo ao lado de Samuel Blixen, um dos três fundadores do MLN-Tupamaro, juntamente com Raúl Sendic e Pepe Mujica. Era uma figura que impressionava pela retidão, tornando-se posteriormente biógrafo de Pepe Mujica, presidente do Uruguai pela Frente Amplio. Mais tarde, eu iria conhecer outro uruguaio que impressionava igualmente pela retidão e vasta cultura– Eduardo Galeano, colaborador da Editora Terceiro Mundo em Montevidéu. Sempre que vinha ao Rio de Janeiro, Galeano visitava a nossa redação na Rua da Glória.

Com Andrea Lanzi, veterano responsável pela grande central sindical CGIL e também pelo antigo Partido Comunista Italiano (PCI) na América Latina, hoje no Partido Democrático (PD), tive e tenho um grande contato político e de amizade. Com o Andrea estou sempre aprendendo sobre a realidade italiana e europeia em geral. Outra grande figura do antigo PCI com quem muito aprendi foi Carlo Cioni. Tendo residido por alguns anos na antiga União Soviética, Carlo se tornou amigo pessoal de Mikhail Gorbachev e me relatou, certa vez, que Gorbachev e Alexander Dubcek estudaram juntos na escola de Quadros mantida pelo PCUS em Moscou, nos anos 50. Assim, um teria influenciado o outro na busca por um socialismo mais democrático e humanista. Fica o registro. Outra grande figura do antigo PCI que conheci foi Giuseppe Vacca, que presidiu a Fundação Gramsci, sediada em Roma. Homem profundamente simples e extraordinariamente culto.

Conheci, ainda, duas figuras impressionantes da Revolução Cubana. Uma delas foi Armando Hart, então Ministro da Educação de Cuba, um camarada extremamente educado, que falava pausado. Era o Secretário de Organização do PC Cubano. Tive apenas um encontro com ele, acompanhando meu pai. Foi um herói da Revolução, tendo sido preso diversas vezes pela ditadura Batista. Outro companheiro cubano que conheci e convivi por algum tempo chamava-se Luiz e falava um espanhol com sotaque típico da ilha caribenha. Ou seja, quase áspero, metálico. Mas era uma pessoa também calma, de gestos lentos e fala tranquila — ainda que metálica. Quem me apresentou a ele foi o jornalista Haroldo Hall, então diretor da Prensa Latina em Paris. Haroldo era brasileiro e trabalhou antes na antiga Última Hora, no Rio de Janeiro. Diretor da Prensa Latina por ocasião da intervenção militar de 1964, ganhou o Uruguai e, dali, zarpou para o mundo. Viveu em Havana, Praga e Paris. Nascido em São Luís do Maranhão, Haroldo era muito querido em Cuba. "El Pequeño Canga" — o Cangaceirinho, por alusão à sua baixa estatura e fortes traços nordestinos, era assim que os cubanos o chamavam. Haroldo era uma das raríssimas pessoas nesse mundo que privaram da intimidade de Fidel Castro, o "Comandante en Jefe". Costumava ficar horas conversando com Fidel em seu gabinete de trabalho. Mais de uma vez me disseram que ele entrava sem bater na sala de Fidel. Realmente não era para qualquer um. Luiz também era um companheiro fraternal de Fidel Castro, conforme me revelaria depois. Apesar de conversar volta e meia com Luiz, eu pouco sabia sobre a sua vida. Até que, um dia, fiz a ele um comentário sobre os primórdios da Revolução Cubana e o heroísmo de homens como Cienfuegos e o Che. E manifestei a minha surpresa frente ao duplo — e, para mim, ao menos, desconcertante — conteúdo da Revolução Cubana. Isto é, houve luta armada no processo de derrubada de Fulgencio Batista, em 1959, mas o início de ruptura com o capitalismo, no bojo da proclamação do caráter socialista da Revolução, dois anos mais tarde, se deu por via pacífica. Muita gente se equivocou inclusive quanto a isso. Violência na derrocada da ditadura; caminho pacífico na marcha ao socialismo. Vá entender um processo desses... Dava até para imaginar que fosse o contrário! Mas não era. Apolônio de Carvalhoconcordou com meu raciocínio, quando assim me manifestei em entrevista que fiz com ele para o Jornal do Brasil anos depois. Voltando ao Luiz, o cubano se pôs a discorrer então sobre a importância das lutas travadas ainda sob a ditadura Batista. A resistência armada, as greves operárias, o papel dos estudantes, mostrando toda a complexidade do contexto pré-revolucionário. E foi aí que fez a revelação surpreendente: "Yo estaba en el Gramna", disse-me. "Soy uno de los sobrevivientes". O Gramna, como sabemos, era o barco que conduzia, desde o México, os revolucionários cubanos até o litoral do seu país. Eram, ao todo, 82 homens a bordo. Só que, no desembarque, os revolucionários foram atacados pelas tropas de Fulgencio Batista e cerca de 20 deles morreram em combate. Entre os sobreviventes, o próprio Fidel Castro, o Che e, também, o meu interlocutor Luiz. Os insurretos conseguiram ganhar depois as selvas da Sierra Maestra, onde se organizaram para pôr fim à tirania de Batista. O resto da História nós já conhecemos praticamente de cor, com o papel central da greve geral em Havana.

De certa forma, todo esse convívio significou uma verdadeira Universidade para mim. Como não recordar, por exemplo, a figura de Doudou Diène, diplomata senegalês e diretor-executivo da Unesco, que me convidou, em 1998, para apresentar um projeto sobre o tráfico de escravos, unicamente com base na leitura que realizara do meu livro Memorial dos Palmares? Uma honra e tanto, sem dúvida. Aos 46 anos, a minha idade à época, eu tive a sensação de que valeu a pena estudar e pesquisar. Afinal, a Unesco era– e é– uma espécie de ministério da Educação mundial. A ideia de Doudou Diène era entregar o projeto nas mãos de Nelson Mandela, de quem era amigo pessoal. Mandela, que conheci no Rio de Janeiro quando ele veio apresentar a alguns brasileiros sua candidatura à Presidência da República da África do Sul, se prontificou a discursar na Organização das Nações Unidas, pedindo o fim da dívida externa da África, com base na sangria representada pelo tráfico de escravos. Entreguei o projeto em questão, composto de duas dezenas de páginas, se me recordo bem, mas dificuldades internas da Unesco impediram a sua colocação em prática, apesar do empenho de Doudou Diène e de Violeta Aguiar Trovoada, do pequenino São Tomé e Príncipe. Violeta era sobrinha do primeiro presidente de São Tomé Príncipe, Miguel Trovoada, figura histórica da luta contra o colonialismo português, de ascendência brasileira. Teve um irmão sacrificado nas lutas pela libertação de Angola, e eu não posso me esquecer jamais da dor de sua mãe. Ele era membro do Comitê Central do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA). Esse fato, por si só, revela o quanto o passado influi no presente ou o quanto o presente é o passado hoje. Como historiador, não posso ignorar isso.

E eu não poderia esquecer o meu querido e saudoso amigo Alberto Passos, um dos fundadores do MPLA. Membro do Comitê Central, Alberto esteve preso em 1960 com Agostinho Neto, ou seja, apenas quatro anos após a fundação do MPLA. Um dos momentos mais emocionantes da minha vida aconteceu quando o Alberto nos convidou a Samuel Iavelberg e a mim, para almoçar com ele em Lisboa, precisamente no dia que o Brasil reconhecia a Independência de Angola. E o Alberto só nos revelou isso ao final do nosso almoço: “Vou me encontrar com vosso embaixador. O Brasil vai reconhecer hoje a República Popular de Angola e eu serei um dos negociadores”. Na antiga metrópole, as duas ex-colônias portuguesas colocaram um ponto final no colonialismo. Um dia histórico e que nunca mais saiu da minha memória. Tenho a firme convicção de que a África tem um grande futuro pela frente, uma vez que, em 2050, de cada dois seres humanos, um nascerá no continente africano.

Fiquei muito feliz, igualmente, quando dei a aula inaugural da Faculdade Letras, na Universidade de Bolonha, a mais antiga da Europa, em 2012. Ainda mais que o tema da minha palestra girou em torno da obra e do engajamento do querido poeta Ferreira Gullar.

Outro momento de grande alegria se verificou quando a plataforma Arquivo Marxista na Internet (MIA), com cerca de 25 milhões de acessos por ano, publicou, na íntegra, meu livro O PCB-PPS e a cultura brasileira. O MIA abriu uma exceção para mim, pois nunca publicava autor algum em vida. A plataforma é internacional, podendo ser consultada em mais de 80 idiomas. Em tempo: o MIA reúne a produção de pouco mais de 400 autores marxistas de todas as partes do mundo, sendo que alguns desses autores tinham começado a publicar já em meados do século XIX. Uma honra, sem dúvida, integrar um grupo tão extraordinário, que vai de Karl Marx e Friedrich Engels a Paul Lafargue e Vladimir Lenin, apresentando ainda obras de Antonio Gramsci, György Lukács e Karel Kosik. Posteriormente, o MIA uma plataforma digital para abrigar a série Brasileiros e Militantes, integrada por 44 documentários com personalidades da vida política, cultural e sindical brasileiras. Mais uma honra para mim. Esse trabalho foi realizado, em algumas de suas etapas, em parceria com Rodolfo Villanova e Eugênio Viola.

Eu tive outro grande prazer, que não poderia deixar de mencionar aqui: foi quando meus amigos Luiz Carlos Prestes Filho e Lucas Bueno se basearam em meu livro O caminho do alferes Tiradentes para compor a belíssima ópera intitulada Molhem minha goela com cachaça da terra. Atualmente, estamos preparando, sob a direção de José Carlos Asbeg, uma série documental com base neste meu livro, a partir de uma proposta da Aquarius Produções Culturais.

Por tudo isso, e não somente pelas leituras e pesquisas, eu me sinto um historiador existencial. Mesmo a arte de ler, conforme escreveu Émile Fuguet, “é a arte de pensar com um pouco de ajuda”. Daí eu ter plena consciência da importância do diálogo com outras correntes e pontos de vista no interior da historiografia, sem contar ainda a contribuição de outras disciplinas para a construção do conhecimento. Daí eu considerar importante valorizar as marcas deixadas pela vivência e pelo dia a dia em cada um de nós. As viagens, em particular, contribuíram muito para minha formação, assim como o engajamento social, conforme já mencionei. Todos nós compomos uma soma das nossas relações sociais, convém lembrar. Uma espécie de universalidade na diversidade.

Sei que estabeleci uma lista longa de nomes e situações. Mas todo trabalho intelectual repousa em uma rede de contatos, isto é, tem um acentuado viés coletivo e um conjunto grande de influências recebidas e trocas estabelecidas. Muitas vezes somos apenas o intérprete disso.

 *Ivan Alves Filho, historiador

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