Por que então estariam sorrindo os sírios que se querem
filhos de um Deus menos surtado?
Aplicada à vida política, a cosmética mental permite
esdrúxulas aproximações entre realidades tão diferentes como a síria e a
brasileira. É que as aparências, a terapia de águas mornas tem efeitos de
pensar feridas e molificar tensões. Mesmo ante o risco de cair a maquiagem de
moderação da liderança jihadista, os sírios acorrem às ruas
de Damasco para festejar o fim da ditadura de 54 anos da família
de Bashar al-Assad um
país destruído por 13 anos de guerra civil. Estranho que pareça, a alegria se
sobrepõe à incerteza quanto ao cenário futuro.
O poder instalado pela coalizão rebelde HTS
é liderado por um indivíduo que ostenta dois nomes: Abu
Mohammad al-Joulani e Ahmed Hussein al-Chara. Com o primeiro, nome de
guerra, ele fez carreira sangrenta no Estado Islâmico, depois na al-Qaeda até
fundar a sua frente, al-Nosra. Com o segundo, nome civil para fins de relações
públicas, diz não ter sangue nos olhos. Mas, nomeou um primeiro-ministro
provisório, al-Bashir, membro da Irmandade Muçulmana, cujo programa político
reza "Allah é nosso objetivo, o Profeta nosso chefe, o Corão nossa lei, a
Jihad nosso caminho, a morte no caminho de Allah a nossa mais cara
esperança".
Minha Nossa. Por que então estariam sorrindo os sírios que
se querem filhos de um Deus menos surtado? A resposta está nos primeiros
momentos da queda de um regime que exterminou milhares de pessoas e exilou
milhões. As descrições das atrocidades na prisão de Saydnaya remontam aos
piores pesadelos da humanidade. Numa avaliação realista sobre a nova liderança,
a suspensão do terror pode estar por um fio de cabelo: a olhos islâmicos, pelos
públicos de mulheres são tão licenciosos quanto os púbicos. Mas há uma pausa no
medo. Alegria é o modo de fazer durar o momento.
Guardadas as proporções, esse sentimento deve presidir entre
nós ao que pesquisas deixam transparecer quanto aos desmandos extremistas. Nada
menos de 69% das pessoas apoiam a democracia, 62% são contrárias à anistia aos
criminosos do 8 de janeiro. Nenhuma alteração perceptível nas posições
polarizadas, mas é provável uma trégua no estresse coletivo. As bestas
recolhem-se às tocas.
A socialidade nas redes sociais é bipolar, ora maníaca, ora
depressiva. O golpe urdido a fogo lento por uma camarilha teve a cumplicidade
da exaltação maníaca nas redes. Em contrapartida, depressão "é um cansaço
de poder e de fazer" (Byung-Chul Han em "Sociedade do Cansaço").
Ocorre quando o terrorismo termina engolindo os seus próprios ativos pela
irracionalidade das ações.
Nada indica que a estrutura social por trás do golpismo
centenário tenha sido abalada. Bolsonaro foi um catalisador, descartável a
médio prazo, embora a grife "bolsonarismo" continue precificada no
mercado eleitoral. Mas a desmontagem de uma rede extremista de generais
capitaneada por um proscrito do Exército vai além da esfera penal, é um evento
de magnitude social. Sugere um descanso na loucura. É automática, claro, uma
cosmética teatral de moderação. Ainda assim, seja entre nós ou os sírios, por
conta da violência que rasteja na penumbra, a depressão dos brucutus é salutar
para a cidadania.
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