Vivemos entre a incompletude radical das soluções locais
e a precariedade dos instrumentos multilaterais criados a duras penas
Frases e reflexões de Antonio Gramsci, um clássico moderno,
costumam correr livremente na barafunda das redes sociais, e não por acaso. Uma
delas é particularmente expressiva e trata de transições turbulentas, como a
que o sardo viveu há cem anos e como a que agora vivemos nós. É quase certo que
já tenhamos lido aqui e ali sua definição de “interregno” – um tempo estranho e
incerto, nebuloso até, em que o velho morreu e o novo ainda não nasceu. Um
tempo por isso mesmo povoado de monstros e anomalias políticas. Palavras de
fogo, certamente, cuja utilidade presente não é preciso ressaltar.
Naturalmente, para ele a novidade histórica, apesar da sua
reconhecida fineza analítica, teria o perfil delineado pelos acontecimentos que
se desdobravam desde 1917, ou seja, a ruptura com o capitalismo. Seu paradigma
era o de algum tipo de revolução, ainda que severamente danificado pelas
dificuldades próprias do Ocidente político e pela emergência de uma enorme
reação conservadora – o fascismo, do qual, como é bem sabido, se tornaria
prisioneiro.
Paradoxalmente, soltos e dispersos na
hipermodernidade, estamos em condição relativamente mais desfavorável. Não
podemos nos escorar, nem sequer de modo problemático, numa filosofia da
História que garanta futuro radioso. Homens e mulheres de esquerda que
abraçaram com convicção a democracia constitucional – e assumem a necessidade
de incorporar os valores do liberalismo – veem-se às voltas, na nova
trincheira, com recuos e derrotas. A unificação do gênero humano, bem como a
compreensão da interrelação de crises e desafios globais, são realidades que
demoram a se impor e não se pode excluir que jamais se imponham de fato.
Vivemos dramaticamente entre a incompletude radical das
soluções locais e a precariedade dos instrumentos multilaterais criados a duras
penas. Permanece sem solução razoável a contradição entre a mundialização da
economia, apesar de todos os passos para trás, e o âmbito nacional das decisões
políticas. A História, retirados ao menos parcialmente seus determinismos,
mostra-se novamente como uma tarefa em aberto, o que em princípio seria um
convite auspicioso à criatividade. No entanto, no mesmo lance ela acaba por
atemorizar a imaginação. É que em geral aparece sob a forma de perigos e
ameaças inéditos, como a crise climática ou a ruptura que parece anunciar a
inteligência artificial.
A revolução conservadora em curso retoma tópicos essenciais
daquela outra já secular. Cada Estado-nação, sem excluir os mais poderosos,
procura fechar-se em si mesmo, buscando um tempo heroico e uma identidade
perdida – e, no mais das vezes, fictícios. A economia política de agora apregoa
abertamente a atualidade de tarifas e barreiras comerciais que, segundo
comprovada experiência, em outros momentos foram a antessala das guerras
propriamente ditas. Neste quadro mesquinho, se algum simulacro de Welfare acaso
se realizar, estará na melhor hipótese circunscrito aos pátrios limites, com
exclusão de imigrantes e outros elementos supostamente alheios à pureza étnica
ou cultural.
Com a segunda presidência Trump, entre as ilusões perdidas
está a de que seu primeiro termo não passou de um parêntese casual.
Internamente, não é difícil antever a pressão sistemática e deliberada sobre as
instituições, abrindo certamente menos a possibilidade de um regime abertamente
fascista do que a de uma destas arriscadas situações híbridas que têm
assinalado o declínio relativo das democracias liberais. Externamente, para
usar uma dicotomia relevante, Donald Trump equivalerá a um abandono das aspirações
propriamente hegemônicas do país na ordem global baseada em regras, em
benefício de uma visão puramente corporativa, dominada por ganhos econômicos
imediatos.
Em tal horizonte corporativo, as alianças orientadas por
valores comuns são postas em plano secundário ou desaparecem completamente. A
consigna “primeiro a América” impede que se incorporem, no próprio cálculo,
interesses e orientações de aliados tradicionais ou que se imaginem políticas
de cooperação como as que aconteceram no pós-guerra, a exemplo do Plano
Marshall ou das iniciativas para garantir o comércio e a resolução pacífica de
conflitos.
O cosmopolitismo entra em crise, o multilateralismo se
arruína e não é irrazoável pensar na multiplicação de pequenos Trumps, como os
que rondam regularmente a União Europeia e também nuestra América. Isso sem
falar na rede de autocratas em guerra permanente contra os direitos humanos, a
universalidade do voto e as instituições responsáveis pelo controle do poder.
Numa palavra, a rede mobilizada contra o legado das revoluções modernas, o que
exige cada vez mais o firme compromisso histórico entre liberais e socialistas.
Nota: repetindo a fala do carpina para o retirante, no poema
de João Cabral, não temos resposta às questões acima. No entanto, para os de
boa vontade é tempo de renascimento. É tempo, pois, de celebrar a vida, que
nunca deixa que se rompa o fio severino da esperança, “belo como um sim numa
sala negativa”.
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