É preciso remoer os fatos, processá-los. Lembro-me de Samuel
Beckett: não se passa um dia sem que algo seja acrescido ao nosso saber. Desde
que suportemos as dores. Com o apoio de todos os governos, o Acordo de Paris repercutiu
pouco na prática. E agora, com a nova saída dos Estados Unidos?
Já estouramos a meta de 1,5°C de aumento na temperatura. Já
esgotamos o tempo, é tarde demais. Já extravasamos o espaço; para sustentar o
nível de vida americano, precisaremos de cinco planetas Terra.
O drama estará completo se o Brasil cair nas mãos do
negacionismo climático. A direita daqui realmente não acredita no aquecimento
global. Trump apenas finge, pois está de olho na Groenlândia, que terá outro
valor, como terra e como rota.
Aparentemente, e com uma dose de otimismo, podemos dizer que
o Brasil ainda é moldado por nós. Mas as coisas aqui não são e nunca foram
fáceis. O objetivo estratégico pode até ser comum, mas haja cotoveladas e
pontapés no que aparenta ser o mesmo lado da trincheira.
Apoiar o governo tem vários significados. Um deles é
defender tudo o que ele faz, inclusive seus erros. Outro é exigir eficácia,
inovação, leitura mais precisa do Brasil moderno. Uma coisa é se contentar com
reuniões ministeriais que não são mais do que pajelanças: precisamos, não
podemos mais, a partir de agora… Outra coisa é esperar que haja um programa em
movimento, saber a quantas anda a transição energética, a política de IA, a
reconstrução de uma infraestrutura das pontes que caem ou cairão.
O boato de taxação do Pix foi um bom
momento para acordar. Manipulação de adversários, onda de fake news, manobras
algorítmicas das big techs? Pouco se falou da vulnerabilidade latente com a
desconfiança popular.
Verdade é que a oposição faz um longo trabalho associando a
imagem do governo a um voraz cobrador de impostos. Isso não teria eficácia se a
taxação se limitasse aos mais poderosos. Mas houve hesitações no caso das
importações chinesas, chamadas de “blusinhas” pela imprensa.
Estamos no limiar de uma batalha semelhante. É a que trata
de regulamentar a internet. Países que fizeram isso com êxito, como a Escócia, lançaram
um ato contra o discurso de ódio para proteger minorias vulneráveis, inclusive
pessoas trans. Aqui se fala muito em proteger o governo. A primeira-dama
afirmou que o governo e Alexandre de Moraes são parceiros no combate às fake
news. Opiniões exaltadas na TV definem como crime as críticas às políticas
públicas, numa espécie de transe norte-coreano.
Pelo que sinto na rua, muitos se informam apenas pelo WhatsApp. Nem
imaginam que mais de 90% das notícias se originam na imprensa. Por isso temem
perder contato com o que se passa no país se houver alteração nas redes. Claro
que esse medo não tem o mesmo peso dos que temiam por seu bolso. Desde a
Inconfidência Mineira, sabemos que a repulsa aos impostos é maior que qualquer
bandeira de liberdade de expressão.
Mesmo marchando com cuidado num mundo tão difícil, evitar o
negacionismo não basta. Temos a questão do Congresso, que atrasa o país. Grupos
fisiológicos se apoderam do Orçamento. Os gastos não são racionais, não avaliam
as necessidades do país, não são transparentes e, nos últimos tempos,
mostram-se uma fonte de corrupção. Um governo negacionista não conseguiria
destruir o país sozinho, pois parte do dinheiro seria gasto pelos grupos que
dominam o Congresso.
Da mesma forma, é impossível levar adiante uma política
construtiva dividindo o Orçamento com o Congresso, algo que não existe em
nenhuma democracia ocidental. Estamos com uma infinidade de problemas e, ainda
no final, teremos de digerir essa jabuticaba nacional, um Congresso gastando a
rodo.
Será preciso muita humildade e tolerância para desatar
tantos nós, importados ou simplesmente made in Brazil.
Artigo publicado no jornal O Globo em 27 / 01 / 2025
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