Um acordo para taxação das gigantes da Internet já tinha
fracassado na OCDE, e a situação agora complicou mais
Donald Trump terminou seu discurso de posse como novo
presidente dos Estados Unidos, na segunda-feira (20), avisando que
"nada se interporá em nosso caminho porque somos americanos".
No mesmo dia, anunciou uma avalanche de decisões, marcadas
pelo isolacionismo. Uma delas procura desmantelar a vasta reforma do sistema
tributário internacional negociada na Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). Alveja na prática a soberania dos outros
países e busca ditar as regras do jogo conforme a exclusiva conveniência dos
EUA.
Trump não se preocupa com a ordem internacional baseada em
regras e nem em alimentar sua rede de aliados, e quer exercer seu poder por
dominação econômica, medo e força, como definiu o "New York Times".
No caso da tributação global, essa é uma ilustração a mais.
Ele mandou o secretário do Tesouro
notificar a OCDE que compromissos feitos pelo governo de Joe Biden relacionadas
ao Acordo Tributário Global não tem força ou efeito nos EUA.
Além disso, mandou o Tesouro e a USTR (Agência de
Representação Comercial dos EUA) investigarem nos próximos 60 dias as regras
tributárias de todos os outros países do mundo, ameaçando com sanções qualquer
medida que considerem "extraterritorial" ou que afete
"desproporcionalmente" as empresas americanas. Republicanos já
tinham deixado claro que consideram que é isso que acontece hoje, o que
significa que os outros países estão sob ameaça.
O plano de reforma do sistema tributário
internacional, negociado por 147 países na OCDE, em Paris, tem, ou
tinha, dois pilares.
O "Pilar 2" introduziu o imposto
mínimo global que os países podem adotar em suas regras internas para
cobrar das grandes multinacionais uma taxa efetiva de 15% sobre os lucros que
elas realizam onde exercem suas atividades. Vem sendo implementado por
cerca de 50 países, incluindo o Brasil.
Já o "Pilar 1" não teve acordo entre os
países, como foi constatado no começo deste ano. Por ele, uma fatia de 25% dos
lucros das vendas realizadas por cerca das 113 maiores múltis, muitas do setor
digital, como Facebook, Amazon e Google, seriam tributadas
onde suas vendas se realizaram, mesmo sem presença física nesses locais.
Procurava definir critérios para realocação de lucros entre jurisdições e
estabelecer quais os Estados que tem direito a tributar.
No ano passado, lideranças do Partido Republicano já tinham
enviado uma carta à direção da OCDE avisando que o Congresso exerceria
represálias contra os países que taxassem os lucros das empresas americanas em
seus territórios. Rejeitavam acordo global, alegando que isso "obrigaria
os EUA a renunciar a US$ 120 bilhões de receita em proveito de governos
estrangeiros, ao mesmo tempo oferecendo vantagens concorrenciais à China e a
outros países".
Agora, em meio a "pânico e caos" em círculos da
OCDE, alguns procuram acreditar que o memorando de Trump 2.0 não representa
desengajamento total, diferente de uma saída da Organização Mundial
da Saúde (OMS), por exemplo.
A avaliação é que o governo Trump será transacional em
impostos e tarifas internacionais, usando estes como armas de dissuasão na
busca de conformidade aos seus interesses. E que no médio prazo talvez não
seja interesse dos EUA ficar fora de um acordo na OCDE, até para empresas
americanas escaparem do risco de dupla tributação. Mas isso ocorreria se os
demais países eventualmente decidissem enfrentar o unilateralismo trumpiano.
A China quer o acordo tributário global. E a expectativa é
de que Pequim vai negociar com os EUA também nessa área. Com outros países,
Washington poderá entrar numa fase de discussões bilaterais para estabelecer o
que querem. No "Pilar 2", de taxação mínima de 15%, por exemplo, o
governo Biden excluiu do acordo setores como bancos e companhias de petróleo,
por exemplo.
É muito difícil negociar com qualquer governo dos EUA. Mas
com equipe de Trump é ainda mais duro. Os trumpistas não negociam, e sim
exigem. Não ouvem, tentam impor, conforme diferentes relatos.
Sem o acordo para taxação dos gigantes da Internet, vários
países tinham avisado na OCDE que adotariam diferentes taxas individuais sobre
as big techs. Ao invés de uma taxação global, haveria assim o risco de haver
mais de 80, no que negociadores chamam de "volta ao mundo da selva",
ampliando a fragmentação da economia mundial e retaliação entre países. Se isso
vai acontecer, em meio às ameaças de Trump, é algo a ver.
No primeiro governo Trump (2017-2021), a USTR, a agência de
representação comercial americana, abriu investigação sobre "taxas de
serviços digitais" visando o Brasil, Áustria, República Checa, União
Europeia (UE), Índia, Indonésia, Itália, Espanha, Turquia e Reino
Unido com base na "Section 301 of the Trade Act of 1974".
Essa lei dá ao governo americano ampla autoridade para responder ao que
considerar práticas desleais afetando negativamente interesses comerciais americanos.
No caso brasileiro, Washington reclamava de uma proposta
apresentada na Câmara pelo deputado João Maia (PL-RN), a chamada Cide-Digital.
O Brasil aceitou fazer consultas bilaterais com o governo dos EUA, e explicou
que essa iniciativa não era do governo e sim de um parlamentar.
Agora, para a ONG Tax Justice Network, o que Trump 2.0
fez em seu primeiro dia na Casa Branca foi não apenas eliminar as "já
fracas reformas tributárias da OCDE, como efetivamente ameaçar destruir tudo o
que foi construído no último século na área tributária internacional".
"O memorando de Trump coloca em dúvida qualquer medida
que busque garantir que os lucros sejam declarados onde a atividade ocorre --
pelo menos se a multinacional for dos EUA, e certamente se os lucros estiverem
sendo transferidos para lá", avalia Tax Justice Network. "O governo
dos EUA está, portanto, colocando em dúvida o direito de qualquer país de
tributar uma empresa americana, inclusive quando elas estão localizadas e fazem
negócios em outros países."
A escolha para os países é clara: "Eles podem desistir
de qualquer esperança de exercer seus direitos de tributação sobre grandes
multinacionais por pelo menos mais quatro anos [durante o mandato de Trump] e
simplesmente tentar evitar uma briga com o novo agressor. Ou podem se unir e
trabalhar para defender a soberania tributária de cada país, comprometendo-se
com um progresso ambicioso e inclusivo nas negociações da Convenção-Quadro das
Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional".
As reações até agora tem sido de prudência. No momento, não
há indicação de países querendo antagonismo com Trump e buscando ação coletiva
para ‘’resistir à intimidação do novo governo dos EUA”, na expressão de Tax
Justice Network.
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