sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

CONFUSOS E À DERIVA

José de Souza Martins, Valor Econômico

Quem hoje se define como conservador no Brasil tende a ser um reacionário, alguém que não compreende as mudanças sociais, culturais e políticas e que as teme

Para situar a confusão ideológica que caracteriza a visão que da sociedade atual e de si mesmos têm os que se comportam como identificados com o olavo-bolsonarismo e com a extrema direita que nele se expressa, é necessário fazer uma arqueologia das palavras por meio das quais seus atores se definem.

A confusão é grande. O seu palavreado ideológico é pseudoconceitual, porque expressa uma consciência social tosca, fragmentária e de colagens que reúne palavras da linguagem de mera sobrevivência dos que dela carecem.

Mesmo quando aparentemente remetem a orientações doutrinárias conhecidas, são delas descoladas porque nossa realidade social de agitadores ideológicos direitistas, de uma classe média difusa e confusa, não tem consistência política. Só o risco do caos. O conceitualismo da atual direita brasileira é indício de uma esquizofrenia ideológica manipulada, de uma sociedade doente.

Com a lenta e teimosa ascensão política de Bolsonaro e de seus coadjuvantes civis e militares, seus seguidores e simpatizantes sentiram-se cada vez mais à vontade para se autodefinirem por meio de atributos supostamente conceituais. Até então ninguém dizia que era “de direita”. Na verdade, nem “de esquerda”. Porque são categorias definidoras de classificação exterior e arbitrária das aparentemente ideológicas orientações dos de um desses modos definidos.

Foi com surpresa que, depois de algumas décadas sem encontrá-lo, porque me mudara de cidade, encontrei-me com velho conhecido, evangélico, que me disse, ao longo da conversa ocasional, ter finalmente compreendido que era de direita.

Num país de gente privada de identidade política desde sempre, o bolsonarismo compreendeu que havia em nossa mentalidade atrasada um vazio a ser ocupado. Dera-lhe um nome e um conteúdo o nome derivado do de uma pessoa que representa a frustração desse vazio. No modo de ver do meu velho conhecido, ele percebera que tinha uma identidade política. Não é casual que o mito dessa referência ideológica tenha uma biografia de fracassos e erros, mesmo na curta carreira militar.

A estabilidade mais ou menos rígida do bolsonarismo nas pesquisas de opinião eleitoral é um indício significativo dessa anomalia identitária de fundo meramente nominal.

Não é, pois, casual que a disseminação da mania de vestir símbolos nacionais como a nossa bandeira e suas cores simbólicas, expresse a servidão ideológica própria do extremismo de direita e da negação do que é propriamente política: razão e liberdade, e não emoção e sujeição.

Aqui e ali, ouvi afirmações de gente de classe média de que eram liberais, e por isso bolsonaristas, porque as esquerdas seriam adversárias da liberdade de pensamento, mesmo de quem não pensa. Sentem-se tolhidos, sobretudo no risco não confirmado, de que governos de esquerda são de esquerda porque cerceiam o cidadão no direito de pensar e decidir com base em seus próprios valores e interesses. Ainda que antissociais e que contrariem o bem comum. Atribuem às esquerdas o que é próprio da direita.

Sequer percebem que no mundo moderno as esquerdas são uma pluralidade de concepções a respeito da democracia, baseada no direito à diferença e à pluralidade de modos de pensar e de viver. Essa é a esquerda do século XXI.

Nem sempre governos e partidos que se dizem de esquerda o são propriamente. O stalinismo, na URSS, teve sua face fascista na autodefesa autoritária contra a invasão alemã e nazista. Disso nos fala Lukács, sua vítima, em famosa carta.

De uma mulher evangélica, ouvi que era conservadora porque contra as mudanças nos costumes, “coisa das esquerdas”, e era liberal porque tinha o direito de recusar-se a seguir orientações que contrariam suas concepções de costume, como a vacinação contra covid. Curiosamente, uma orientação autoritária no que negava, interpretada como liberal.

A uma das interrogadas no processo relativo à intentona de 8 de janeiro de 2023 o juiz pediu que esclarecesse sua participação na invasão e depredação dos recintos do poder: “porque sou conservadora, contra o aborto e o uso da maconha”.

Isso nada tem a ver com a tradição conservadora. Praticamente, não temos conservadores no Brasil. Temos reacionários, que não compreendem e temem as mudanças sociais e a modernidade. Gente que, porque inculta, se protege no falso abrigo de lideranças e ideologias oportunistas e antidemocráticas. Vítima de uma educação manipuladora que deixou de lado o pensamento crítico e o aprimoramento da consciência social. Que já não reavalia continuamente a realidade como um processo contínuo de ressocialização das pessoas, de reeducação e aperfeiçoamento da personalidade, autoras de reformas sociais.

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