Assunto para desesperança não falta, daí a importância de
relembrar a felicidade coletiva pelo prêmio de Fernanda Torres
A terra arde na Califórnia, falta ar respirável na Venezuela
de Nicolás Maduro, Mark
Zuckerberg assume sua covardia cívica, e o mundo gira aparvalhado às
vésperas de uma nova era — a era Trump II. Assunto para desesperança não falta,
daí a importância de relembrar também aqui, e sempre que necessário, a
felicidade coletiva que inundou o Brasil nas últimas horas do domingo passado.
Dada a excepcional safra de concorrentes ao Globo de Ouro de
Melhor Atriz, poucos ousavam esperar que Fernanda Torres saísse premiada pela
atuação em “Ainda estou aqui”, o precioso filme de Walter
Salles baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. O filme já
havia corrigido uma lacuna colossal na História do país (e da ditadura militar)
dando voz, corpo e alma à figura de Eunice Paiva. Já havia sensibilizado mais
de 3 milhões de brasileiros e devolvido vida a salas de cinema. Já havia gerado
análises fluviais e pertinentes em todas as mídias nacionais. Mas foi o anúncio
surpresa transmitido ao vivo de Beverly Hills que fez com que o Brasil (ou boa
parte dele) acordasse na manhã seguinte em estado de euforia coletiva. Uma
alegria não estridente nem impositiva, de mera felicidade impregnada pela arte.
Como foi gostoso sentir orgulho compartilhado e sem soberba. De repente, o
amanhã fugidio e incerto foi substituído por um presente generoso, marcante,
esperançoso.
Passado o folguedo coletivo, ainda sobrou
espaço para uma efervescência mais reservada e íntima, de leveza sorridente,
chamada de estado de graça. Clarice Lispector a descreve lindamente em crônica
publicada no Jornal do Brasil de 6 de abril de 1968 (*):
— O estado de graça de que falo não é usado para nada. É
como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Neste
estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma
lucidez que só chamo de leve, porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma
lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não
perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço,
sabe-se. E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se
transforma num dom. E se sente que é um dom, porque se está experimentando,
numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente — diz um dos
trechos.
A graça do estado de graça está em não durar. Sai-se dele
com um suspiro de saudade, mas habituar-se à felicidade seria um perigo,
garante a escritora. Ficaríamos mais egoístas, menos sensíveis à dor humana,
não sentiríamos a necessidade de criar pontes para alcançar o outro.
Neste início de 2025 vivemos na convergência de dores
inseparáveis — as do planeta, das sociedades e do indivíduo. Para David
Wallace-Wells, autor do seminal “A Terra inabitável — uma história do futuro”,
já esgotamos as condições ambientais que permitem a evolução do animal humano e
rumamos para uma era de incerteza não planejada, insegura quanto ao que somos
capazes de suportar como espécie.
— O sistema climático no qual crescemos e nos proporcionou
tudo o que entendemos como cultura e civilização está morto, tal como nossos
pais — resume ele.
Outro estudioso do nosso acelerado desarranjo climático é o
também americano Jeff Goodell, autor de “The heat will kill you first: life and
death on a scorched planet” (O calor o matará primeiro: vida e morte num
planeta esturricado). Publicado em 2023 como uma espécie de guia de
sobrevivência no século XXI, Goodell explica que nossos corpos são máquinas
calibradas para funcionar dentro de parâmetros de temperatura bastante
estreitos. Isso vale para todas as espécies de viventes — árvores, répteis,
ursos-polares, tubarões em oceanos, nós. Quando o pico térmico a que nos
habituamos sofre uma alteração alta demais, e rápida demais, simplesmente
morremos. E de morte cruel: as membranas de nossas células começam a derreter,
as proteínas que controlam as funções dessas estruturas passam a se dissolver,
e o corpo literalmente derrete por dentro. Felizmente, a maior parte de vítimas
de calores extremos morre antes, seja de ataque cardíaco ou algum outro
problema de circulação.
Mas por que falar de cenários indigestos num domingo de
férias com o verão a fullgás? Porque a partir da segunda-feira, 20 de janeiro,
data da posse de Trump como 47º presidente dos Estados Unidos,
os temas urgentes para a humanidade sofrerão um atropelo sem precedentes. Mais
do que nunca, será preciso lembrar os alertas de hoje e das alegrias de ontem
para melhor impedir uma supremacia pela força no amanhã.
(*) A crônica contém uma observação de Clarice Lispector
no pé do texto:
—P.S.: Estou solidária, de corpo e alma, com a tragédia
dos estudantes do Brasil.
Referia-se, indiretamente, ao assassinato do estudante
secundarista Edson Luís, assassinado pela ditadura militar instaurada em 1964.
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