domingo, 12 de janeiro de 2025

GLOBO DE OURO FOI ESTADO DE GRAÇA

Dorrit Harazim, O Globo

Assunto para desesperança não falta, daí a importância de relembrar a felicidade coletiva pelo prêmio de Fernanda Torres

A terra arde na Califórnia, falta ar respirável na Venezuela de Nicolás Maduro, Mark Zuckerberg assume sua covardia cívica, e o mundo gira aparvalhado às vésperas de uma nova era — a era Trump II. Assunto para desesperança não falta, daí a importância de relembrar também aqui, e sempre que necessário, a felicidade coletiva que inundou o Brasil nas últimas horas do domingo passado.

Dada a excepcional safra de concorrentes ao Globo de Ouro de Melhor Atriz, poucos ousavam esperar que Fernanda Torres saísse premiada pela atuação em “Ainda estou aqui”, o precioso filme de Walter Salles baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. O filme já havia corrigido uma lacuna colossal na História do país (e da ditadura militar) dando voz, corpo e alma à figura de Eunice Paiva. Já havia sensibilizado mais de 3 milhões de brasileiros e devolvido vida a salas de cinema. Já havia gerado análises fluviais e pertinentes em todas as mídias nacionais. Mas foi o anúncio surpresa transmitido ao vivo de Beverly Hills que fez com que o Brasil (ou boa parte dele) acordasse na manhã seguinte em estado de euforia coletiva. Uma alegria não estridente nem impositiva, de mera felicidade impregnada pela arte. Como foi gostoso sentir orgulho compartilhado e sem soberba. De repente, o amanhã fugidio e incerto foi substituído por um presente generoso, marcante, esperançoso.

Passado o folguedo coletivo, ainda sobrou espaço para uma efervescência mais reservada e íntima, de leveza sorridente, chamada de estado de graça. Clarice Lispector a descreve lindamente em crônica publicada no Jornal do Brasil de 6 de abril de 1968 (*):

— O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Neste estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve, porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se. E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom, porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente — diz um dos trechos.

A graça do estado de graça está em não durar. Sai-se dele com um suspiro de saudade, mas habituar-se à felicidade seria um perigo, garante a escritora. Ficaríamos mais egoístas, menos sensíveis à dor humana, não sentiríamos a necessidade de criar pontes para alcançar o outro.

Neste início de 2025 vivemos na convergência de dores inseparáveis — as do planeta, das sociedades e do indivíduo. Para David Wallace-Wells, autor do seminal “A Terra inabitável — uma história do futuro”, já esgotamos as condições ambientais que permitem a evolução do animal humano e rumamos para uma era de incerteza não planejada, insegura quanto ao que somos capazes de suportar como espécie.

— O sistema climático no qual crescemos e nos proporcionou tudo o que entendemos como cultura e civilização está morto, tal como nossos pais — resume ele.

Outro estudioso do nosso acelerado desarranjo climático é o também americano Jeff Goodell, autor de “The heat will kill you first: life and death on a scorched planet” (O calor o matará primeiro: vida e morte num planeta esturricado). Publicado em 2023 como uma espécie de guia de sobrevivência no século XXI, Goodell explica que nossos corpos são máquinas calibradas para funcionar dentro de parâmetros de temperatura bastante estreitos. Isso vale para todas as espécies de viventes — árvores, répteis, ursos-polares, tubarões em oceanos, nós. Quando o pico térmico a que nos habituamos sofre uma alteração alta demais, e rápida demais, simplesmente morremos. E de morte cruel: as membranas de nossas células começam a derreter, as proteínas que controlam as funções dessas estruturas passam a se dissolver, e o corpo literalmente derrete por dentro. Felizmente, a maior parte de vítimas de calores extremos morre antes, seja de ataque cardíaco ou algum outro problema de circulação.

Mas por que falar de cenários indigestos num domingo de férias com o verão a fullgás? Porque a partir da segunda-feira, 20 de janeiro, data da posse de Trump como 47º presidente dos Estados Unidos, os temas urgentes para a humanidade sofrerão um atropelo sem precedentes. Mais do que nunca, será preciso lembrar os alertas de hoje e das alegrias de ontem para melhor impedir uma supremacia pela força no amanhã.

(*) A crônica contém uma observação de Clarice Lispector no pé do texto:

—P.S.: Estou solidária, de corpo e alma, com a tragédia dos estudantes do Brasil.

Referia-se, indiretamente, ao assassinato do estudante secundarista Edson Luís, assassinado pela ditadura militar instaurada em 1964.

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