A democracia está vulnerável no mundo. Vivemos uma
onda autocrática e iliberal. Trump potencializa essa vulnerabilidade ao assumir
a Presidência dos EUA
É prudente analisar a gravidade do novo contexto histórico
mundial, não apenas a partir a Europa Oriental e do Oriente Médio,
respectivamente, onde as guerras na Ucrânia, invadida pela Rússia, e em Gaza,
onde Israel mantém os bombardeios indiscriminados, ou do avanço da extrema
direita nas potências europeias. A situação se complicou ainda mais com a
eleição de Donald Trump, que tomará posse no próximo dia 20 de janeiro e deve
acelerar as mudanças políticas em curso no mundo. Nada será como antes.
As declarações do novo presidente norte-americano, antes
mesmo de tomar posse, anunciam uma grande distopia: tomar de volta o Canal do
Panamá, anexar o Canadá, comprar a Groenlândia, sobretaxar os produtos
mexicanos, mudar o nome do Golfo do México para Golfo da América, expulsar os
imigrantes latinos, anistiar os invasores do Capitólio que, sob sua liderança,
tentaram impedir a diplomação de Joe Biden...
Até que ponto são declarações para
"causar" nas redes sociais e não objetivos políticos reais? As
ambições territoriais de Vladimir Putin e Benjamin Netanyahu são fichinha perto
das de Donald Trump. Chega a ser assustador. Lembro-me do curta-metragem Uma
Noite no Madison Square Garden, de 2019, documentário de sete minutos composto
unicamente de imagens históricas de um comício nazista em 20 de fevereiro de
1939, menos de sete meses antes da eclosão da 2ª Guerra Mundial.
O filme mostra que o nazismo não existiu só na Alemanha nos
anos 30 e 40. Seduziu e ainda dá sinais frequentes de capacidade de sedução de
indivíduos perigosos, reacionários e violentos. Organizado por Fritz Julius
Kuhn, líder do German American Bund, o Partido Nazista Americano, o ato reuniu
20 mil supremacistas na famosa arena de Nova York.
Kuhn destilava ódio contra judeus. Todos os liberais eram
comunistas. O filme, no atual contexto mundial, deixa a impressão de que os
norte-americanos eram muito suscetíveis ao nazismo. Na verdade, houve muitos
protestos contra o comício, antes e depois de sua realização, com várias
tentativas de evitar que ocorresse. Mas as liberdades de expressão e de reunião
estavam acima de tudo.
Uma Noite no Madison Square Garden mostra a reverberação de
ideais segregacionistas e desumanos que levaram, entre outras coisas, ao
Holocausto. O Bund (federação) Germano-Americano nunca passou de 25 mil
filiados, mas a adesão da Frente Cristã, liderada pelo padre antissemita
Charles Coughlin, deu escala ao evento.
Dezenas de pessoas portando bandeiras dos Estados Unidos
marcharam solenemente até o fundo da sala, com uniformes parecidos com os do
Exército norte-americano, diante de uma gigantesca imagem de George Washington.
O orador principal, Fritz Kuhn, era um alemão naturalizado americano, mas disse
que estava ali para exigir que o governo voltasse para as mãos dos americanos,
seus fundadores. Falava com forte sotaque alemão e gestual inspirado em Adolf
Hitler. Kuhn criticava a "imprensa controlada pelos judeus".
Cadela no cio
O filme termina com uma soprano entoando Star-Spangled
Banner, o hino americano. No dia seguinte ao ato, o New York Times noticiou que
o Bund havia coletado quase US$ 8,5 mil em doações, o equivalente a US$ 150 mil
nos dias de hoje. Naquele mesmo ano, Kuhn seria preso por se apropriar de US$
250 mil de seus seguidores. A repórter Dorothy Thompson, que fora
correspondente do New York Post em Berlim e cobriu a ascensão do fascismo antes
de ser expulsa da Alemanha, em 1934, testemunhou o evento e escreveu um artigo
para a Harper's Magazine intitulado Who goes nazi? (Quem vai virar nazista?).
Especulava sobre pessoas comuns que poderiam aderir ao
nazismo: "O nazismo não tem nada a ver com raça ou nacionalidade. Ele
atrai um determinado tipo de mentalidade. (…) O intelectual frustrado e
humilhado; o especulador rico e assustado; o filho mimado; o tirano dos
empregados; o homem que alcançou o sucesso com oportunismo — todos eles
abraçariam o nazismo", escreveu. Felizmente, a derrota de Hitler na 2ª
Guerra Mundial liquidou o nazismo como alternativa de poder, mas não o
pensamento reacionário que levou ao poder.
Hoje, a democracia representativa está vulnerável no mundo.
Vivemos uma onda autocrática e iliberal. Na Presidência dos EUA, Trump
potencializa essa vulnerabilidade. Aliado aos megaempresários da tecnologia
Elon Musk (Tesla/X) e Mark Zuckerberg (Facebook/Instagram), seu novo mandato
ganha uma projeção de poder na política mundial que ultrapassa a influência
americanista de Hollywood e o peso estratégico das Forças Armadas
norte-americanas, porque alcança corações e mentes dos usuários dessas redes
sociais de forma instantânea e manipulada em todo lugar onde atuam.
O afrouxamento do controle sobre difusão do discurso do ódio
e de fake news pelas redes sociais por parte do governo norte-americano, a
pretexto de defender a liberdade de expressão, terá consequências graves. As
democracias não conseguem acompanhar a velocidade das mudanças tecnológicas e
seu impacto na vida e na mentalidade das pessoas. Além disso, "o fascismo
é uma cadela que está sempre no cio", como disse o poeta alemão Bertold
Brecht.
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