Empresa de transporte privado de passageiros por
aplicativo desafia a lei e o poder público para iniciar operação com
motocilcistas em São Paulo, ignorando o bem-estar coletivo
Há cerca de uma semana, uma das gigantes do setor de
transporte privado de passageiros por aplicativo iniciou sua operação com
motociclistas em São Paulo. A estratégia desafia a prefeitura local, que se
posiciona contra o serviço, resguardada por um decreto proibitivo assinado pelo
prefeito Ricardo Nunes (MDB) em 2023. No frigir dos ovos, o que se desenha é
uma situação conhecida aos olhos da opinião pública: uma empresa de tecnologia
coloca a lei à prova para ampliar seu mercado, a partir de uma guerra judicial
e midiática que ignora o bem-estar coletivo.
Por um lado, a empresa oferece um serviço rápido e barato,
capaz de seduzir o trabalhador sufocado pelo já conhecido caos do trânsito de
São Paulo. O transporte com motos por aplicativo resolve dois problemas de quem
perde horas com o vai e vem nas grandes cidades: diminui o tempo perdido no
transporte público e oferece um custo-benefício superior aos abarrotados ônibus
e metrôs.
Por outro, está em jogo a segurança viária. É provado,
estatisticamente, que os motociclistas integram a maior parte das vítimas do
trânsito nas grandes cidades brasileiras. Em Belo Horizonte, por exemplo, quase
60% dos acidentes com morte no ano passado envolveram o veículo sobre duas
rodas. Foram 89 registros diferentes, uma média de uma vida perdida a cada
quatro dias. Os dados são da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança
Pública (Sejusp). No primeiro semestre de 2024, em média, seis motociclistas
morreram, por mês, vítimas de sinistros nas vias da capital do país, segundo os
dados do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF).
Apesar da queda de braço momentânea, o histórico mostra que
os embates entre o poder público e a iniciativa privada, no Brasil, terminam em
goleada a favor das empresas de tecnologia. O relatório Caminhos do Trabalho —
feito pelo Fundacentro, do Ministério do Trabalho e Emprego, em parceria com a
Universidade Federal da Bahia (UFBA) — mostra que 25% dos entregadores de
aplicativo entrevistados em 2023 relatam ter sofrido algum acidente durante o
exercício da profissão.
Ainda assim, esse tipo de serviço opera normalmente no
Brasil, a partir de uma explosão da demanda após a pandemia da covid-19. Ou
seja, mesmo com os riscos comprovados em gênero, número e grau, as empresas
mantêm suas atividades, a partir do lobby do setor e também de uma pressão da
opinião pública, que faz questão de usar o serviço por sua comodidade e
custo-benefício.
Em São Paulo, no último capítulo da batalha judicial, a
Justiça autorizou o Executivo a fiscalizar os motociclistas da plataforma. A
cidade garante ter apreendido dezenas de veículos do tipo por irregularidades,
enquanto a empresa informa que pagará todas as multas dos seus cadastrados. A
estratégia é clara: desgastar o poder público e conseguir o direito de operar
"na marra".
Se os problemas e as vantagens do transporte de passageiros
por motos estão claros, qual a saída para o desafio apresentado? A resposta
requer debate entre as diferentes partes envolvidas, com via livre,
principalmente, para os especialistas em trânsito. A regulamentação precisa
considerar os aspectos técnicos, trabalhistas, econômicos e sociais. Todos
devem ser ouvidos para se chegar a um denominador comum.
Algumas medidas, porém, têm necessidades cristalinas. A
Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a velocidade máxima das vias
deve ser de 50km/h. Diante da possibilidade razoável de sufocamento do sistema
público de saúde por causa dos acidentes com motociclistas, urge que as
empresas criem mecanismos para que seus prestadores de serviço respeitem a
velocidade máxima das vias — razão principal de ocorrências graves, como
mostrou o Estado de Minas em sua recente série de reportagens Vítimas da velocidade,
publicada no início do mês.
Além disso, é preciso olhar para regras que funcionam em
outras metrópoles ocidentais. Em Nova York, quando se olha para a questão do
delivery, a regulamentação obriga as empresas a pagarem um valor mínimo aos
trabalhadores do setor, uma medida que ameniza o pé pesado no acelerador,
dentro da ótica de que "tempo é dinheiro".
Seja qual for o resultado da queda de braço em São Paulo, a
resposta não pode passar pelo paliativo. Trata-se de uma questão grave para a
saúde pública e sintomática da sociedade informatizada, que, cada vez mais,
procura comodidade aliada ao menor custo.
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