O belo, comovente, primoroso ‘Ainda estou aqui’ ficou no
meio do fogo cruzado entre os nossos radicais e os extremistas deles
De quem terá sido a infeliz ideia de dividir o país entre
“nós” e “eles”? (A pergunta é retórica: todo mundo sabe de quem foi; é só um
desabafo, antes de começar o texto.) Essa proposição pode ter rendido votos e
mobilizado as torcidas organizadas — mas nos fez (e ainda faz) um mal danado.
O conceito até que tem lá seu apelo: evoca o Gênesis, quando
Deus viu que “nós” (a luz) éramos bons e nos separou “deles” (as trevas) — sem
dar um pio sobre a penumbra. Retoma a doutrina bíblica de que “quem não está
comigo está contra mim” — sem possibilidade de seguir o voto do eminente
relator, divergindo só na dosimetria da pena. Tampouco é questão de múltipla
escolha — que, eventualmente, admite “nenhuma das alternativas anteriores”: só
tem “falso ou verdadeiro”. É, como no poema infantil da Cecília Meireles, ou
isso ou aquilo. Mais rudimentar, impossível. E, talvez por isso, tão eficiente.
Mas tem seus senões: “nós” somos o “eles”
deles, e tudo que dissermos contra eles ricocheteia e volta, com sinal trocado.
Se ao menos fosse “nós x vocês”, haveria um olho no olho, uma abertura ao
diálogo, um reconhecimento do outro como interlocutor legítimo. Não: “nós x
eles” somos nós falando para nós mesmos daqueles que, convenientemente, não
estão na conversa para contra-argumentar.
Usado dessa forma, o pronome “nós” perdeu o seu caráter
plural, inclusivo. Virou algo como “eu e os meus parças” — que renderia, no
máximo, um slogan do tipo “Brasil, país de todos — menos deles”.
O resultado é que, na Copa, houve quem torcesse contra
aquela que um dia foi a nossa seleção — afinal, Neymar era
“eles”, não “nós”. Nesta semana, no Globo de Ouro, não faltaram muxoxos com a
vitória da Fernanda
Torres — tanto por parte dos que acham que ela é uma “deles” quanto
dos que não a consideram “nossa” o bastante (é branca, cis, heterossexual,
burguesa, esbelta, não periférica, muito pouco quilombola, nada ribeirinha e
ainda atua em filme de banqueiro bilionário). O belo, comovente, primoroso
“Ainda estou aqui” ficou no meio do fogo cruzado entre os nossos radicais e os
extremistas deles (quem são “eles” e quem somos “nós” fica por sua conta,
leitor).
Por isso, talvez fosse melhor decretar uma moratória de
prêmios — e esperar a dilapidação dessa herança maldita e divisiva — antes de
ganharmos um Nobel, um Pulitzer, um Pritzker, um torneio de Wimbledon, um Mr.
Olympia, um Miss Universo —ou mesmo um Oscar. Como (exceto para os americanos)
não é todo dia que se abocanha um desses, não convém desperdiçar a chance, e
festejar pela metade. Mais adiante, já sem ranços nem rancores, o país inteiro
poderia celebrar a vitória — como nos tempos de Pelé, Tostão e
Rivelino, de Martha Vasconcellos, de Ayrton Senna,
de “O pagador de promessas”, lembra?
São remotas as chances de conseguirmos isso até o dia 19,
quando a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood divulga a
lista de indicados, ou mesmo até 2 de março, data da premiação.
Quem sabe em 2026 o Walter
Salles faça outro filme, o Ramon Dino melhore o shape ou um
livro da Adélia Prado caia nas mãos da Academia Sueca... Aí, eu, tu, ele, nós,
vós e eles — mesmo divergindo em um ou outro ponto — comemoramos juntos.
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