O vocabulário político está viciado. Não conseguimos mais
falar das coisas com sentido de proporção. Comportamentos não são mais
machistas ou racistas, mas misóginos e supremacistas. As posições não são mais
de esquerda ou de direita, mas sempre de extrema direita — quando referidas
pela esquerda — ou de extrema esquerda — quando referidas pela direita. Ações
voluntárias e involuntárias foram equiparadas, e a intenção e a boa-fé deixaram
de valer como atenuantes. Todo comportamento que pode ser condenado precisa ser
condenado nos mais duros termos. O resultado político é a intolerância e a
incapacidade de convívio.
Antes, o termo machismo era usado para designar
comportamentos discriminatórios que promoviam a superioridade dos homens sobre
as mulheres, e misoginia era um termo incomum, usado excepcionalmente para se
referir a uma hostilidade extrema e patológica às mulheres. Hoje se tornaram
intercambiáveis, e há predomínio do termo mais forte sobre o mais fraco.
Uma pesquisa no Google Trends mostra que,
nos anos 2000, o termo machismo era 14 vezes mais recorrente que misoginia.
Essa relação começou a mudar nos anos 2010 e se inverteu nos anos 2020. No
último ano, misoginia foi 50% mais recorrente que machismo. O termo que
descreve o comportamento mais extremo e patológico tornou-se mais frequente do
que o usado para designar atitudes preconceituosas mais comuns.
Outra mudança importante é a disseminação das críticas às
discriminações estruturais e implícitas. Em 1967, o ativista americano do
movimento negro Stokely Carmichael cunhou o termo “racismo institucional” para
se referir aos efeitos discriminatórios de políticas públicas — efeitos que não
recebiam o mesmo grau de atenção e condenação do que atos abertamente
discriminatórios de grupos abertamente racistas:
— Quando terroristas brancos bombardeiam uma igreja negra e
matam cinco crianças negras, isso é um ato de racismo individual. Quando,
porém, na mesma cidade de Birmingham, Alabama, 500 bebês negros morrem a cada
ano devido à falta de alimento, abrigo e instalações médicas adequadas, isso é
função do racismo institucional.
Em 2013, no livro “Ponto cego”, Mahzarin R. Banaji e Anthony
Greenwald mostraram a prevalência de vieses raciais implícitos, comportamentos
racistas involuntários. Definiram o viés implícito como “conhecimento
associativo de que podemos não ter consciência. Por exemplo, alguém pode
explicitamente sustentar crenças igualitárias e, ao mesmo tempo, fazer
associações automáticas, como associar ‘negro’ a ‘desagradável’, que não são
conscientemente reconhecidas. Esses vieses implícitos frequentemente se dissociam
de atitudes reflexivas ou explícitas e podem influenciar comportamentos sem
intenção ou consciência”.
Quando o campo da denúncia do racismo se expandiu do racismo
aberto — a crença na superioridade de brancos sobre os negros — para essas
formas institucionais e inconscientes, a condenação não se abrandou porque o
racismo, nesses casos, não era intencional. O princípio basilar de que a boa-fé
é um atenuante, quando não diretamente um exculpante, é desprezado por essas
acusações desproporcionais.
A razão para esse estado de coisas é que nosso debate
político foi moralizado. Não dispomos mais de vocabulário para graduar a
caracterização das faltas porque a moderação da resposta é vista como
conivência, portanto ela mesma uma falta a condenar.
Se, diante de um pequeno ato que prejudica o direito das
mulheres, o chamamos apenas de discriminatório ou desrespeitoso, em vez de
machista ou misógino, a falta será nossa. Somos nós que não temos sensibilidade
social, que perdemos a capacidade de indignação com a violência contra a
mulher. Num mundo político moralizado como o nosso, todos os incentivos são
para que as condenações sejam as mais severas e mais rigorosas. Quanto mais
dura a reprovação, maior a virtude daquele que condena.
A hiperbolização do discurso político tem levado a um
ambiente de intolerância, em que a falta de proporção na caracterização das
faltas desvaloriza tanto a gravidade dos comportamentos extremos quanto a
possibilidade de estabelecer diálogos construtivos. Ao perdermos a capacidade
de distinguir entre faltas menores e ofensas graves, tornamo-nos incapazes de
oferecer respostas proporcionais e de reconhecer a boa-fé como atenuante
legítimo. Precisamos resgatar o sentido de proporção, adotando um vocabulário político
que permita criticar sem distorcer e condenar sem perder a noção de justiça.
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