Novo mundo não seria mais uma comunidade de vizinhanças
contraditórias, mas uma totalidade do globalismo
Impressiona a naturalidade com que as sociedades das grandes
economias do mundo recebem o que pode ser o fim das democracias gestadas nas
revoluções Francesa e Americana. A postura fracassada do “apaziguamento” do
Acordo de Munique,
como filosofia diplomática na década de 1930, desarmou os espíritos para a
resistência ao nazismo, tornando os povos dóceis ao pragmatismo e à traição. A
docilidade leniente custou milhões de mortos no Holocausto, nos campos de
batalha do mundo inteiro, nas cidades incendiadas da União Soviética e de toda
a Europa.
Umberto Eco, em 1998, viu a emergência de um novo projeto
fascista, presente nas fragmentações da pós-modernidade, que poderia transferir
para os Estados dos países ricos o monopólio político das redes, para a
construção de um novo mundo. Este não seria mais uma comunidade de vizinhanças
contraditórias, mas uma totalidade — esta sim — do globalismo perfeito. Por
meio dela, o modo de vida, a cultura e a política seriam uniformizados pela
mentira, construções falsas da “verdade” perfeita e inquestionável.
A articulação do Estado americano com Mark
Zuckerberg e Elon Musk —
depois das ameaças diretas à soberania do Canadá, Groenlândia, Panamá e México — é a
formação de uma Internacional Protofascista que — na recusa da modernidade e no
culto da “ação pela ação” — é acompanhada de uma concepção de mundo em que a
vida não é uma luta por viver, mas pelo autoaniquilamento humano.
Esse novo Estado “globalista” visa a reorganizar o pacto
imperial-colonial num outro nível: com a posse dos territórios por meio do
controle político da opinião, com o uso apenas subsidiário da força militar
externa. Um sistema apoiado no servilismo manipulado, que se torna voluntário,
dos mais explorados, dos aniquilados pela miséria, dos infelizes e sociopatas,
bem como de todos os que não foram integrados à vida comum da “normalidade”
capitalista. Do ventre das crises do capitalismo nasce o fascismo, não o
socialismo da reforma ou da revolução.
Estaremos num momento “decisivo” para o futuro da
Humanidade? Desde a adolescência ouvimos essas sentenças. Por isso, nos
acostumamos a recusá-las. Pode ser dito, todavia, que, se não for um momento
decisivo, é o momento final de um ciclo, no qual o próprio termo “decisivo”
perde o seu sentido. Um novo período, no qual a História fará de nós o que
ainda não sabemos, mas que será bem pior do que o ciclo do moderno que ora se
encerra. A rebeldia do espírito humano poderá vencer?
Dois exemplos a serem recordados para enfrentar essa ameaça.
Primeira rebeldia: a de George Steiner, quando lembra o livro de Primo Levi, em
que ele destaca o valor necessário “para desejar sobreviver a Auschwitz”, por
meio da recordação da escuta do Canto de Ulisses, na “Divina Comédia” de Dante.
Segunda: lembrando Aleksander Wat, pensando que poderia suportar o seu
recolhimento pelo stalinismo à prisão de Lubianka, quando numa manhã, no
princípio da primavera, ouviu à distância um fragmento da “Paixão segundo São
Mateus”, de Bach. Duas rebeldias da consciência contra situações aparentemente
sem saída.
No outro lado da História, o sentido do humano na
modernidade não difere do que John Reed viu na Revolução Russa, para situar-se
nos seus acontecimentos épicos:
— De um lado, um punhado de operários e soldados de armas na
mão, representando a insurreição vitoriosa, serenos, mas com um aspecto
miserável. Do outro lado, uma multidão furiosa, formada pela mesma espécie de
indivíduos, que se aglomeravam ao meio-dia nas esquinas da Quinta Avenida, de
Nova York, rindo, injuriando, vociferando: “Traidores! Provocadores!”.
O potencial da Revolução iniciava também os movimentos para
devorar seus filhos.
As duas placas tectônicas dos últimos três séculos —
Iluminismo e Revolução Russa — são agora substituídas por outros cataclismos.
As ideias de luta contra os fascismos, bloqueadas pelos algoritmos da
dominação, que geram enxames informais do irracionalismo edificado de fora da
vida social, por emoções fugazes aceleradas pelo ódio. Vencer significa
construir um povo universal, consciente dos perigos da transição climática, das
desigualdades sociais e das guerras surdas ou estrondosas a que os países mais
ricos submetem o gênero humano. Internamente, isso significa formar novas
frentes políticas para isolar o fascismo e os apóstolos de qualquer ditadura
civil ou militar.
*Tarso Genro e Aloysio Ferreira foram ministros da
Justiça
Nenhum comentário:
Postar um comentário