sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

AINDA ESTAMOS AQUI

José de Souza Martins, Valor Econômico

A voz de Eunice Paiva não é voz do passado, do que foi e dos que se foram. Ela é uma necessidade social e política

Mal iniciado o ano, mais de 3 milhões de pessoas já haviam comparecido aos cinemas para ver “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva sobre a tragédia de sua família, que teve início com o sequestro de seu pai, o ex-deputado Rubens Paiva, por militares à paisana.

Esses milhões expressam a prontidão insubmissa da consciência crítica e democrática dos que resistem à violência e à mentira do autoritarismo que subjuga e humilha uma nação inteira. O restolho da ditadura sobreviveu e retornou ao poder em 2019, apoiado na falsa consciência dos alienados.

Desde o dia seguinte ao do término formal do golpe de 1964, dissimulados, continuaram a maquinar, nas brechas da democracia inacabada, a tirania de seu modo de mandar e comandar como se fosse modo de governar.

Ingênuos, como somos, não sentimos o cheiro de enxofre, disseminado na neblina de nosso atraso e de nossas lentidões. Muitos brasileiros nunca entenderam que a República não nos fez republicanos nem cidadãos nem patriotas nem donos de nós mesmos. A Lei Áurea não libertou os que careciam de liberdade, os cativos, antigos e novos, do latifúndio. A República disfarçou, modernizou e institucionalizou a senzala. E profissionalizou os capitães do mato.

Ainda que muita gente tenha escapado das armadilhas da História, abolição e República não são obra de alguns, menos ainda dos espertos e dos espertalhões. Obra não concluída que nos faz uma sociedade de vítimas. Somos uma nação de sobreviventes.

Seria um erro ler o livro de Marcelo Rubens Paiva como se fosse um panfleto político escrito para exorcizar as almas penadas dos que, nesta quadra de incertezas em que estamos, personificam a burrice, a ignorância, o oportunismo dos que não servem ao país, mas do país se servem.

O livro é melhor lido com o método de Antonio Candido, que define uma obra literária e a obra de arte como formas de manifestação de necessidades expressionais, as do autoconhecimento da sociedade.

Ainda assim, a arte é autoral, na criatividade literária e artística que distingue Ignácio de Loyola Brandão de Maria Adelaide Amaral, de Mafra Carbonieri, de Anna Maria Martins, de Lygia Fagundes Telles, de Ruth Guimarães. São eles autores do inatual de nossa atualidade.

É que na obra de arte não é o autor quem fala, escreve, pinta ou fotografa. É ele e o outro que nele há. Ele não é a voz da solidão. A história o escolhe para que ele dê forma às necessidades de expressão da sociedade, de traduzir em dizer e em significar aquilo que ela é, mas não parece ser nem sabe propriamente que é.

Marcelo Rubens Paiva começa seu livro com lúcidas e desafiadoras referências à memória, ao envelhecimento e ao esquecimento, à perdição de nós mesmos em relação ao que fomos desde o nascimento. Somos esquecendo, mas não suprimindo porque, no outro, o feito está feito. A memória é social.

Talvez, com Guimarães Rosa, ele queira dizer que o sentido de uma biografia está no meio da travessia, nesse não chegar próprio desta sociedade dominada pelo tempo do inacabado e do inacabável.

É sua mãe, Eunice Paiva, personagem do livro, quem lhe revela, na desmemória do Alzheimer, que o meio da travessia é a chave do enigma do social como uma totalidade em totalização. Que esta sociedade do individualismo não é uma sociedade de indivíduos, mas de pessoas, de gente.

Marcelo autor não é um apenas. Sua mãe lhe diz somos. O “eu estou aqui” quer dizer eu estou em você que me interpreta, que me expressa, me decifra para que o outro me compreenda como outro e se compreenda. Os milhares que lerão teu livro de minha fala silenciosa. Os que veem o filme magistral que, inspirado no livro, Walter Salles fez e nele Fernanda Torres me representa. Representar é tornar presente o ausente.

Porque, sabendo ou não, somos socialmente um todo. Pelo livro convertido em filme os já milhões de espectadores colocam sua consciência em face dos tormentos da ditadura não só na tortura e nos assassinatos, mas também nas mediações cotidianas da vida de outros. O grito de Eunice não é só dela, é do outro que somos. É de Rubens Paiva, que aponta o dedo acusador para o brigadeiro nazista por trás dos que o prenderam e mataram. E para o coronel evangélico que fez o mesmo com tantos outros no Doi-Codi, escondendo sua covardia nas páginas manchadas de sangue de sua Bíblia apócrifa.

A voz de Eunice não é voz do passado, do que foi e dos que se foram. Ela é uma necessidade social e política que os ressuscitados agentes da ditadura manipulam para bloquear a insurreição das consciências que estão aqui, nas páginas do livro e do livro e no filme. A cultura não é ideologia, é a alma insubmissa da liberdade e da vida.

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