A criançada saía batendo de portão em portão. Já com a
mão no bolso da calça ou do avental, o dono ou a dona da casa dirigia-se ao
portão e dava para a criança uma moeda
No período colonial, o ano novo começava no dia 25 dezembro.
Documentos oficiais, como as atas das câmaras municipais, mudavam a indicação
numérica do ano no dia de Natal. Escrevia-se 24 de dezembro de 1580, por
exemplo. E, na ata seguinte, 25 de dezembro de 1581.
Lentamente, concepções relacionadas com a passagem de ano
enquanto marcação da passagem do tempo, enquanto tempo litúrgico e histórico,
foram sendo corroídas, envelhecendo aos poucos.
Minha geração viveu e sofreu a angústia de mudanças rituais
na marcação do tempo, que a colocaram em face da consciência de protagonista de
um tempo sem volta, o tempo do fim e da finitude. A criança como personificação
do avesso e do invisível, do novo contido no que é velho e morre.
Por isso, o dia de ano novo tinha um
significado antropologicamente particular. Foi o que notei até 1947, para minha
geração o último ano novo da tradição de que, com a molecada de meu bairro
operário e de minha rua, vivi a função reveladora do novo que decorre do fim e
último.
Na véspera do ano novo, as famílias se preparavam para o
ritual que no dia seguinte, bem cedo, se processaria através das crianças. Aí
pelas 7 horas da manhã, a criançada, já de café tomado, saía pela rua de sua
casa, eventualmente por trechos iniciais de ruas vizinhas, batendo de portão em
portão.
Quando o dono ou a dona da casa aparecia lá no fundo do
corredor lateral, o que vinha da cozinha, fingindo surpresa e estranheza, a
criança gritava “Feliz ano novo”, mal sabendo ela própria o que aquilo
significava. A pessoa lá do fundo devolvia: “Feliz ano novo pra você também”.
Já com a mão no bolso da calça ou do avental, dirigia-se ao
portão e dava para a criança uma moeda. Os mais pobres tiravam uma moeda de um
tostão (dez centavos) ou de 200 réis, que ainda circulava, e a davam à criança.
A dádiva desapontadora podia ser de alguém que era
reconhecidamente pobre. No caso dos que davam pouco porque sovinas, a notícia
corria entre a criançada no minuto seguinte. O pão-duro ficava difamado. O azar
decorrente viria com certeza. Era só esperar.
Muitos sovinas evitavam expor a sovinice porque o augúrio da
criança tinha uma função ritual e mágica, nunca confessada, mas reconhecível
nas formalidades que a cercavam.
As crianças eram socializadas na economia moral de definição
do valor extraeconômico da economia, do dinheiro e das mercadorias. Uma moeda
de 50 centavos era uma dádiva razoável. Já circulava a moeda pesada de 1
cruzeiro, com o mapa do Brasil de um lado e o número 1 bem grande do outro. Era
moeda que deixava qualquer um feliz.
As crianças tinham sua própria “teoria econômica” para
determinar o tamanho do seu reconhecimento ao doador generoso, que assim criava
fama imorredoura, que passava de um ano para outro.
No dia de ano novo, até às 10 horas, com seus votos de porta
em porta, na verdade as crianças cumpriam um rito de renovação do caráter
comunitário das relações de vizinhança.
Com o tempo, compreendi esse aspecto daqueles procedimentos.
No dia a dia meu irmão e eu atravessávamos a rua, abríamos o portão da casa dos
avós e íamos diretamente para a cozinha ou para dentro da casa, pedíamos a
bênção e lá ficávamos.
No dia de ano novo, não. Agíamos como estranhos à casa e à
família. Meu avô, padrinho de meu irmão, dava-lhe uma nota de 10 cruzeiros,
coisa que nem sabíamos o que era. Sendo nota de papel-moeda, era coisa de
adulto, não de crianças.
Para elas, moeda era coisa para quem ainda não crescera.
Aquele valor excepcional da nota desfazia para ele o rito de estranhamento e o
integrava num relacionamento de proximidade parental com o avô-padrinho, seu
pai putativo.
Para mim, no entanto, uma moeda era dádiva de recompensa
simbólica pelos votos propiciatórios. A dádiva era retribuição do adulto à
criança, uma troca. Mas negadora do que era próprio do dinheiro porque desigual
na função renovadora das relações sociais e do seu caráter comunitário, aquilo
que não se compra, apenas de troca.
Diferentemente do que ocorre no mundo da mercadoria e do
dinheiro, em que a troca igualiza os desiguais e as desigualdades, a troca do
voto pela dádiva no ano novo era rito que confirmava a desigualdade de quem
dava e de quem recebia.
Nas diferentes culturas, crianças da primeira infância são o
anômalo porque ainda não são membros da sociedade, à espera de quando se
integraram no repetitivo das relações sociais.
Como observou Marcel Mauss, em clássico estudo sociológico
sobre a magia, as crianças conservam os dons e poderes próprios dos socialmente
não integrados. Elas não sabem, mas a sociedade lhes atribui a condição de
porta-vozes das incógnitas do novo, do futuro e do diferente. O prenúncio.
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