Lula tem motivos para se julgar um predestinado, mas seu
governo vive um momento delicado, diante de grandes incertezas provocada pela
volta de Trump ao poder
Não é raro o político que tenha lido O Príncipe, de Nicolau
Maquiavel, o clássico dos clássicos da política, ao menos uma vez. Publicado em
1532, ou seja, há quase cinco séculos, a obra permanece atual e é considerada
seminal para a política moderna. Maquiavel separou a moral tradicional
relacionada aos indivíduos da lógica que rege os governos, a razão do Estado.
Maquiavel escreveu O Príncipe em 1513, mas a obra só foi
publicada quase 20 anos depois. Foi um texto disruptivo àquela época, pois
separava a Igreja do Estado, ao discorrer sobre os principados e repúblicas da
Itália daquela época, fragmentada pelo colapso do Império Romano e seus
invasores. Seu grande objetivo era inspirar alguém que a unificasse. Um dos
trechos mais interessantes do livro, que tem 26 capítulos, discorre sobre a
Fortuna na política.
Em conversas privadas e discursos, o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva aborda esse aspecto por um ângulo messiânico, no qual se coloca
como um homem predestinado, que sobreviveu a todas as adversidades desde
quando, ainda criança, deixou o sertão de Pernambuco como retirante. O destino
nunca lhe faltou, mesmo nos momentos mais difíceis. Recentemente, a
interlocutores próximos, tem revelado em detalhes como sentiu a morte de perto
no atual mandato — e até mesmo chegou a desejá-la.
Lula cita o caso da pane do avião
presidencial, que passou cinco horas sobrevoando a Cidade do México, com uma só
turbina funcionando, até que fosse autorizado o pouso de emergência. Conta que
procurou disfarçar sua apreensão, brincando com seus ministros e assessores,
mas chegou a avaliar que o avião cairia e todos morreriam. Ficou
particularmente irritado porque, durante horas, não soube exatamente o que
estava acontecendo, até que resolveu tomar satisfações com os tripulantes do
Aerolula.
A outra situação foi a queda no banheiro, quando cortava as
unhas das mãos — e não dos pés, como chegou-se a divulgar. Lula caiu de costas
de um banco e bateu a cabeça num degrau da banheira. Quando se deu conta da
situação, pensou que havia ficado tetraplégico, porque não conseguia se mover.
Nesse momento, fechou os olhos e pediu a Deus para morrer, até que se deu conta
de que os dedos se mexiam. Não conseguiu se levantar, mas se arrastou até o
telefone para pedir ajuda. Foi socorrido pelo policial federal responsável pela
sua segurança, seu ex-carcereiro em Curitiba.
Lula tem motivos para se julgar um predestinado, mas está
abalado emocionalmente e preocupado com a saúde. Seu governo vive um momento
delicado, diante das grandes incertezas provocadas pela volta ao poder de
Donald Trump, o presidente dos Estados Unidos. A avaliação de sua administração
pela opinião pública é negativa, mas Lula está convencido de que isso não
corresponde ao desempenho real do governo. Para o Palácio do Planalto, o
problema é de comunicação. Os analistas, porém, pensam diferente: a crise de
confiança no governo não é apenas uma questão de imagem, foi provocada por
fatores objetivos, principalmente um nó fiscal cujos ingredientes são alta da
inflação, desvalorização do real, juros altos e aumento da dívida pública. A
ordem desses fatores não altera esse resultado.
A infalibilidade do líder
Voltemos a Maquiavel: "De quanto pode a fortuna nas
coisas humanas e de que modo se lhe deva servir" (Quantum fortuna in rebus
humanis possit, et quomodo illis it occurrem dum), o 15º capítulo d'O Príncipe,
foi escrito com a intenção subjacente de separar o Estado da Igreja. Para o
clero, as coisas eram governadas pela fortuna e por Deus, e os homens não
poderiam modificar o seu destino, que já estava predeterminado. Por isso,
muitos deixavam-se governar pela sorte e perdiam o poder.
Maquiavel resolveu dividir as responsabilidades:
"Pensando nisso algumas vezes, em parte, inclinei-me em favor dessa
opinião. Contudo, para que o nosso livre-arbítrio não seja extinto, julgo poder
ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que
ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase". Dizia que o príncipe
que se apoia totalmente na sorte arruína-se segundo as mudanças de conjuntura.
Seria feliz aquele que se acomodasse à natureza dos tempos e infeliz aquele que
entrasse em choque com o momento.
O florentino comparou a Fortuna aos rios torrenciais:
"Quando se encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores e os
edifícios, carregam terra de um lugar para outro; todos fogem diante dele, tudo
cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E, se bem assim
ocorra, isso não impedia que os homens, quando a época era de calma, tomassem
providências com anteparos e diques, de modo que, crescendo depois, ou as águas
corressem por um canal, ou o seu ímpeto não fosse tão desenfreado nem tão danoso".
Os políticos têm muita dificuldade de se distanciar dos seus
interesses imediatos — ou do próprio ego — ao analisar as mudanças de
conjuntura. A coisa fica mais grave quando seus assessores acreditam na
infalibilidade do líder, como acontece no Palácio do Planalto. A Fortuna de
Lula estaria, assim, acima de tudo, mesmo que a conjuntura internacional, o
ambiente econômico e a correlação de forças políticas estejam desfavoráveis.
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