Esquerda resiste à ideia de que contribuiu para a
manutenção de Trump e de seus aliados
Há, evidentemente, muitas razões pelas quais pelo menos
metade dos eleitores norte-americanos tem preferido Trump nas últimas três
eleições. E essas razões provavelmente são muito parecidas com aquelas que
levam pelo menos metade dos eleitores brasileiros a continuar optando por
candidaturas presidenciais da extrema direita desde 2018.
O que me preocupa, no entanto, é a resistência da esquerda e
dos progressistas em se implicar nessa virada eleitoral para a extrema direita,
que tem se repetido ao longo desta última década.
"Implicar-se" significa reconhecer que a própria
esquerda está errando e que seus erros são parte das razões que alimentam o
vertiginoso crescimento do apoio a extremistas, desta vez em conformidade com
as regras do jogo da democracia eleitoral.
O que tem sido constante nas promessas de campanha de Trump,
no seu discurso de posse, nas suas primeiras ordens executivas e em suas
declarações? Duas coisas. Um etnocentrismo sem limites, expresso na retórica
radical de colocar os interesses americanos acima de tudo, proteger a segurança
nacional, romper com compromissos multilaterais e restaurar o orgulho e a
prosperidade do país. E uma promessa direta e sem concessões de desmontar a
agenda e a cultura progressista e de esquerda, especialmente no que diz
respeito à ideologia e às práticas identitárias.
O que há em comum entre essas duas
diretrizes? Uma posição moral baseada na força e na audácia e um líder que se
vende como inabalável, sem compaixão, que nunca pede desculpas, recua ou
demonstra vulnerabilidade. Esse é um etos vitalista e afirmativo, não há margem
para dúvida.
Enquanto isso, para qualquer lado que se olhe, o que os
progressistas estão fazendo? Na semana passada, exigiam o desligamento de
um sócio
de uma editora que se comportou mal com sua mulher há 15 anos. Nesta
semana, pedem que uma cantora seja condenada por racismo religioso,
proibida de se apresentar e obrigada a pagar uma indenização milionária por
ter trocado
o nome de Iemanjá pelo de Jesus em uma performance.
Os progressistas estão presos a uma lógica de retaliação e
revanche. O que oferecem não é uma nova cultura afirmativa, mas uma ênfase na
culpa coletiva e histórica, que reforça a ideia de que o indivíduo está
eternamente preso a um passado que o condena. Seu motor é, em grande medida, o
ressentimento.
Uma grande parcela da sociedade experimenta o identitarismo
como uma moralidade imposta, em que a linguagem deve ser reformulada (novos
pronomes, palavras proibidas, vocabulário "neutro") e o passado deve
ser reescrito. Direitos considerados básicos passam a ser vistos como
privilégios injustificáveis, e o indivíduo deve carregar culpas históricas e
sociais que não são diretamente suas.
Quando o politicamente correto é vivido e sentido por
milhões de pessoas como uma forma de opressão, a alternativa a ele aparece como
libertação. É perfeitamente plausível afirmar que um dos principais atrativos
do trumpismo reside na oferta de um vitalismo afirmativo para amplos segmentos
da população que se sentem oprimidos por essa mentalidade e suas formas
institucionais.
Essa dinâmica se assemelha muito às revoluções morais do
passado. Em certo sentido, o trumpismo promete ser para os conservadores o que
os movimentos contraculturais dos anos 1960 foram para os progressistas —uma
rebelião contra normas repressivas e sufocantes. A diferença é que, agora, a
rebelião é contra a esquerda, seus novos dogmas, sua insaciável sede de
compensações e cotas.
A extrema direita sequestrou o imaginário da rebeldia, um
papel que por muito tempo foi exclusivo da esquerda. Durante o século 20, eram
os progressistas que desafiavam normas conservadoras e pregavam a liberdade
contra a repressão. Agora, com o politicamente correto transformado na nova
ortodoxia cultural, a extrema direita se apresenta como a verdadeira força
rebelde.
Isso permite ao trumpismo se vender como um movimento de
insubmissos, de gente que não se dobra à patrulha ideológica. E, pelo menos na
fachada, isso evoca o "sim à vida" do vitalismo positivo, exalta o
impulso, a espontaneidade e o desprezo pelo conformismo social e moral.
Se a esquerda quiser reconquistar o terreno perdido, precisa
abandonar a lógica da punição e do ressentimento e oferecer algo mais do que
culpa e vigilância moral. Enquanto continuar gritando por mordaças, reparações
e humilhações, seguirá entregando à extrema direita o argumento da rebeldia e
da liberdade. Mas é claro que continuar pensando que quem vota em Trump é
fascista é muito mais consolador.
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