O mundo vem sendo dividido por muros desde priscas eras,
com objetivo de cada grupo, ou tribo, preservar tradições, comércio e vantagens
comparativas em relação aos vizinhos
A pequena cidade de Aguas Blancas, na província de Salta,
Argentina, fronteira com a Bolívia, colocou a América do Sul no mapa das
divisões tribais quando decidiu construir um muro para marcar sua fronteira com
o vizinho naquela região andina. Explico melhor: o mundo vem sendo dividido por
muros desde priscas eras, com objetivo de cada grupo, ou tribo, preservar
tradições, comércio e vantagens comparativas em relação aos vizinhos.
A iniciativa dos vizinhos parece ridícula, porque a
construção é, na realidade, uma cerca de arame farpado com 200 metros de
comprimento, numa área muito maior que pode ser violada a pé para quem quiser
caminhar um pouco mais. Vale, contudo, como registro de um tempo de
impossibilidade de convivência pacífica com quem pensa ou age diferente. Ou
simplesmente é mais pobre. Trata-se de mensagem de apoio do mundo
subdesenvolvido para o grande irmão Donald Trump.
Um dos mais antigos muros de que se têm
notícia é a Muralha da China, com 21 mil quilômetros. É a metade da
circunferência da Terra. Levou mais de um século para ser concluído. Seu
objetivo era defender as dinastias chinesas de invasões dos mongóis. Não deu
certo. Se colocada nos Estados Unidos, a Muralha da China poderia fazer três
linhas paralelas de muro ligando a costa leste à oeste. Mas os norte-americanos
já construíram um muro para chamar de seu, que os separa dos mexicanos e dos
latino-americanos em geral no sul do Texas, na fronteira com Tijuana.
Eles só querem latinos para fazer a colheita de frutas na
Flórida e na Califórnia, limpar residências, cortar grama ou cuidar de
crianças. Qualquer ameaça além disso, termina com pés e mãos amarrados por
algemas em avião militar que despeja o intruso no porto de origem. É a
democracia do grande irmão, o que tem a força. A estupidez do novo presidente
dos Estados Unidos não é original.
O muro na fronteira de Israel com a Cisjordânia, ou aquele
que cerca e envolve Gaza, está entre os mais intimidadores do mundo. Ele é
assustador não apenas por seu tamanho, pelo concreto e aço utilizados, mas pelo
que representa. São povos condenados à separação por incompetência da
diplomacia dos homens. Interesses subalternos, egoísmo, religiosidade extremada
ou nacionalismo pouco inteligente justificam as cercas. A recente guerra
demonstra que os muros servem apenas para serem ultrapassados. Pelos dois lados.
Não separam nada. Os dois lados perderam soldados, civis, crianças, velhos e
esperanças. A paz é precária, no aguardo, apenas, de um novo conflito.
Atravessar o Muro de Berlim, quando dividia a antiga capital
alemã, que, por sua vez, ficava integralmente dentro do setor soviético, não
era agradável. Soldados nada amistosos verificavam documentos, enquanto outro
grupo obrigava a trocar dinheiro em um câmbio artificial caríssimo. Eram duas
Alemanhas, separadas por um formidável muro de concreto, com mais de 180
quilômetros de comprimento.
Começou a ser construído em agosto de 1961, quando o
Exército da Alemanha Oriental iniciou o cerco de Berlim. As autoridades, de um
lado, chamaram o muro de Proteção Antifascista. Do outro lado, ganhou o apelido
de Muro da Vergonha. Em menos de uma década, ele foi concluído, com torres de
vigia, cercas elétricas, cães, campos de tiro, e centenas de guardas
armados.
No lado oriental, as pessoas eram proibidas de se aproximar
dele, mas do outro lado era possível percorrer as ruas que terminavam na parede
de concreto. Em alguns trechos, havia mensagens como "pule o muro e
ingresse no partido". Ou "atenção: área de treinamento de salto em
altura da Alemanha Oriental." O objetivo do muro em Berlim era impedir que
as pessoas deixassem o paraíso comunista. O muro nos Estados Unidos é projetado
para impedir que pobres desfrutem do paraíso capitalista.
Quando Gorbachev lançou suas ideias de
"perestroika", os controles se afrouxaram. No final da primavera de
1989, os alemães começaram a passar férias na Hungria, que pouco depois abriu
sua fronteira com a Áustria. Daí por diante, a corrente humana aumentou e a
pressão popular derrubou o muro no final daquele ano. O povo desmanchou o
concreto e cantou hinos de independência. Um grupo de jovens viajou num pequeno
e barulhento Trabant até Paris, onde foi recepcionado pelos franceses,
engasgando, na avenida Champ-Élysées. Uma farra.
Há outros exemplos de muros na África, na Ásia e até em
cidades antigas que eram usualmente muradas. Os portugueses levaram um susto ao
chegar ao Benim, 1485, e encontrar uma cidade murada maior que Lisboa, com
muros de 20 metros de altura e fossos excepcionalmente profundos, todos
vigiados. Claro que ao homem, chamado civilizado, branco, coube a tarefa de
destruir o que havia sido a conquista civilizatória daquele povo. Os muros não
servem para nada, nem para conquistadores, nem para conquistados.
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