quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

'AQUI TEM FOGO AMIGO, FOGO INIMIGO, FOGO PARA TODO O GOSTO'

Míriam Leitão / O Globo

O ministro Fernando Haddad admite que tem dias difíceis no Ministério da Fazenda, mas promete ficar até o final do governo no cargo e brinca sobre o “fogo amigo”. Em entrevista longa, o ministro falou de dólar, juros, reformas, inflação. Veja abaixo a íntegra da entrevista.

O senhor hoje (quarta-feira) esteve com o presidente da Câmara dos Deputados, apresentando as prioridades do Ministério da Fazenda, da parte econômica. Uma questão foi a Reforma da Renda. O senhor disse que os parâmetros já foram conversados: isenção até R$ 5 mil de renda e tributação no topo. A minha pergunta é se incluirá outras questões do Imposto de Renda? Por exemplo, Imposto de Renda pessoa jurídica, imposto sobre dividendos, isso vai estar no pacote da reforma da renda?

Fernando Haddad: Existe hoje um comando constitucional do Congresso Nacional determinando que o governo encaminhe uma Reforma da Renda. Infelizmente, nós ainda figuramos entre os dez países mais desiguais do mundo.

A reforma (tributária) sobre o consumo, que entra em vigor em 2027, corrige boa parte dessas distorções. Uma delas é a cesta básica, que foi ampliada, e a segunda iniciativa é o mecanismo do cashback. A pessoa que está no Cadúnico e fez suas compras, aquilo que ela pagou de imposto sobre o consumo, tem o imposto devolvido automaticamente na sua conta.

Na prática, hoje os impostos sobre o consumo no Brasil são mais altos do que a média da OCDE. E o imposto de renda é mais baixo do que a média do OCDE, tanto da pessoa jurídica quanto da pessoa física. Sem aumentar a carga tributária - isso é um compromisso com o Congresso Nacional – o que vamos procurar fazer é equilibrar o jogo entre os pobres e os ricos, porque os ricos pagam proporcionalmente muito menos impostos do que os pobres. Essa distorção está sendo resolvida pelas duas reformas.

No caso da renda, o presidente tem um compromisso de isentar quem ganha até R$ 5 mil. Aideia é que, a partir de 1º de janeiro do ano que vem, quem ganha até R$ 5 mil deixa de ter retenção na fonte, não paga mais o Imposto de Renda. E as pessoas que ganham mais de R$ 50 mil tenham um Imposto de Renda mínimo. O que significa um Imposto de Renda mínimo? Se ele tiver uma receita de R$ 50 mil, mas se é um trabalhador, é um servidor público ou um trabalhador celetista, ele já tem a retenção na fonte, então está excluído dessa regra. É a pessoa que tem R$ 50 mil de renda mensal e não tem retenção compatível com o mínimo que vai ser estabelecido em lei.

Quem tem carteira assinada ou quem é funcionário público que ganha R$ 50 mil não terá uma tributação elevada. Vai ser para quem tem essa renda ou mais não tributada ou pelo menos parcialmente tributada, subtributada.

Haddad: Nós estamos considerando o que é pago pela pessoa jurídica, porque muitas vezes você é acionista e você tem um dividendo que hoje é 100% isento, mas a companhia não está pagando imposto, está distribuindo dividendos. Isso vai ser levado em consideração. Se tiver pagando imposto num patamar adequado, também se levará em consideração. No mundo inteiro, essas coisas são integradas. Pessoa física e jurídica são coisas integradas. No Brasil, desde os anos 90, isso deixou de ser. E isso trouxe, na nossa opinião, muitas distorções para o sistema. De maneira que muita gente se aproveita das brechas legais para auferir uma renda muito elevada e escapar do Imposto de Renda.

Mas será só isso ou terá um imposto sobre dividendos?

Haddad: É que na prática, quando você leva em consideração o tributo pago pela pessoa jurídica, você está fazendo isso. Se tiver uma tributação mínima, que está adequada em relação à empresa que está distribuindo dividendos, a situação é uma. Se isso não está acontecendo e a pessoa está auferindo rendimentos e não tem uma tributação minimamente compatível com a sua renda, quer dizer, a pessoa não paga o mínimo. E esse mínimo é bem baixo, que nós vamos pensar...

O senhor está dizendo que isso aí é uma forma de tributação de dividendos em geral ou outras rendas que não são dividendos?

Haddad: Outras rendas que não são dividendos. Você vai compor o combo da pessoa, que pode ser qualquer coisa, e tem coisas que são isentas, que não vão ser levadas em consideração, investimento em poupança, por exemplo, hoje é isento. Mas se a pessoa tem uma renda superior a R$ 50 mil por mês e vai numa escadinha até R$ 100 mil por mês, nós vamos verificar se ela está pagando um imposto mínimo, que vai ser relativamente baixo em relação à experiência internacional.

Mas é para começar um processo de correção de distorção e garantir que o projeto não tenha impacto fiscal.Quer dizer, aquilo que nós vamos abrir mão por um lado é compensado por outro, de maneira que o equilíbrio vai ser mantido. Agora, vai apontar para uma direção no futuro próximo, porque com esse mecanismo, o Estado brasileiro vai poder, como no imposto sobre consumo, aperfeiçoar tanto o imposto sobre consumo como o Imposto de Renda, de maneira tal a que, com a manutenção da carga tributária, porque ninguém está falando em imposto novo, nem em alíquota nova, nem em arrecadação nova, você vai ter mais justiça tributária.

Mas o projeto já está pronto?

Haddad: Ele está entregue ao presidente, que obviamente está debruçado sobre ele agora, foi exposto a ele. Ele quer chamar a AGU para ver se tem alguma inconstitucionalidade, chamar outros ministros para olhar. Evidentemente tem que passar pela Casa Civil. Pode ser que ainda seja objeto de alguma discussão sobre um detalhe ou outro. Mas a arquitetura geral foi apresentada a ele e do meu ponto de vista é uma coisa bastante razoável o que está sendo proposto.

Eu quero voltar a falar de outros projetos, mas eu não resisto de fazer uma provocação. O senhor disse que quando o dólar chegasse a R$ 5,70, a senhor ia comprar. Está chegando. Ontem quase bateu...

Haddad: Na verdade, eu não devia nem ter falado, porque foi no calor ali do debate. O ministro da Fazenda tem que zelar pela pelo equilíbrio macroeconômico e dólar no Brasil é flutuante desde muito tempo.

Então não está na ponta compradora ainda?

Desde 1999 nós temos o dólar flutuante e é bom que seja assim, porque é uma forma de você acomodar choques muito mais eficaz do que você fazer uma intervenção, fazer um controle cambial. Então o dólar flutuar acomoda os choques externos, agora mesmo nós tivemos com a eleição do Trump, em virtude da insegurança e incerteza sobre que de fato a economia mais forte do mundo vai fazer, tem uma dose grande de incerteza, isso faz com que as pessoas corram para o dólar em busca de segurança porque é uma reserva de valor. A maior reserva de valor do mundo é o dólar. Então quem está inseguro, em geral, compra dólar. E como o juro americano ainda está em um patamar muito elevado, orbitando em torno de 5% ao ano, qualquer brincadeira o investidor, o poupador, corre para o dólar. E isso está acontecendo no mundo inteiro, estava acontecendo mais no Brasil, e o que eu disse naquela entrevista foi que, levando em consideração os fundamentos da economia brasileira, na minha opinião, naquele momento, o dólar tinha descolado de uma maneira baseada só em expectativas ou especulação e menos aderente ao que eu estava observando da economia brasileira.

Quando o dólar começou a disparar no fim do ano passado, a maioria dos analistas e dos economistas repetia que o motivo era a crise fiscal brasileira, que o Brasil estava à beira de um colapso fiscal e isso é que estava provocando a alta do dólar. O que o senhor está explicando é que foi por outro motivo, a incerteza em relação ao que vai fazer o governante do país mais poderoso do mundo. Tanto é isso que o dólar subiu no mundo inteiro. E agora está caindo. Essa onda de críticas à questão fiscal, que foi colocada como a razão da disparada do dólar, é verdade que subiu mais no Brasil. Como é que o senhor ouviu isso, essa onda de críticas?

Haddad: Eu não estou negligenciando questões domésticas. Você nunca vai me ouvir dizer que está tudo resolvido no Brasil, mas nós estamos buscando. Ao contrário de governos recentes, e eu sempre falo, faz dez anos que nós temos uma tarefa para cumprir. Se você pegar o déficit, por exemplo, dos três anos do governo Temer, ele foi muito superior ao atual. E ninguém estava falando em dominância fiscal. Se você pegar o déficit do governo seguinte, com Guedes e Bolsonaro, ele foi muito superior ao que está se verificando agora, mas muito superior. Aí eu vejo aqui e ali um editoral e outro falando em gastança. O gasto público como proporção do PIB no ano passado, contando a tragédia do Rio Grande do Sul, foi da ordem de 18,5% do PIB. Ele rodou em 19,5% do PIB durante sete anos. E muitos economistas que vieram a público dizer que acabou o controle, acabou tudo, estavam nesses governos e responsáveis por algumas tragédias que aconteceram. Eu sempre lembro da decisão do Supremo de 2017, que nós estamos pagando até hoje, a chamada Tese do Século, que a equipe do Meirelles estava aqui e por um voto perdeu uma causa de um trilhão de reais, que corresponde hoje a 10% do PIB a mais de dívida pública. Aí alguém há de dizer: mas isso foi em 2017, mas os efeitos dessa decisão estão acontecendo até agora. O ano passado foram R$ 60 bilhões que nós tivemos que pagar a título de compensação, ou seja, dinheiro que deixou de entrar nos caixas, por conta da compensação da Tese do Século.

E eu não vejo essas pessoas .... porque é da vida, tem erros, as pessoas cometem erros, os governos cometem erros, mas eu não vejo essas pessoas com a honestidade necessária para dizer que realmente o governo atual está enfrentando problemas herdados dos governos anteriores. A questão tem gastos tributários que remontam ao governo da Dilma, e que nós só estamos resolvendo agora. E que ela própria, em entrevista, disse: aquilo ali eu não faria de novo. E nós estamos resolvendo dez, 12 anos depois.

Então, o que eu quero dizer, sem ficar apontando o dedo para ninguém, porque eu não estou fazendo isso desde que eu assumi aqui, você não vai ver uma frase minha falando de antecessores meus. Não é meu feitio fazer isso, não fiz na Educação, não fiz na prefeitura, não farei aqui. Mas quando os economistas desses governos vêm a público dizer uma coisa que não corresponde aos fatos, eu tenho que me indignar um pouco. Dizer, olha, espera aí, eu estou com um passivo herdado relativamente grande. Aí falaram, é dominância fiscal. Se fosse, seria um trabalho de muitos anos para a gente chegar na dominância fiscal. Mas nem isso eu acredito que esteja acontecendo. Eu acredito que a política monetária restritiva vai desaquecer, e eu espero que um pouco a economia, para que nós continuemos a crescer com equilíbrio fiscal e do ponto de vista de nível de preços, de inflação. Porque esse é o objetivo da política econômica, crescer de maneira sustentável. E a minha defesa, desde quando eu te dei a primeira entrevista, é a crença de que o Brasil pode crescer de maneira sustentável.

Nós não precisamos de um choque que vai levar a economia para uma recessão, para contingentes da população, para pobreza. Nós não precisamos disso. Nós vamos corrigir as distorções, que são grandes, mas que estão sendo corrigidas, inclusive com o apoio da oposição. Muita coisa que nós encaminhamos para o Congresso, o ministro Padilha fez um balanço hoje junto ao Hugo Motta, que nós aprovamos 32 medidas no Congresso Nacional, todas estruturantes, fora o rame-rame do dia a dia, (medidas) estruturantes.

Agora fui discutir com o presidente Hugo Motta hoje, 15 outras medidas, 8 das quais já estão em implementação, parte na Câmara, parte no Senado. Então é o seguinte, é uma construção. E tudo que eu gostaria que acontecesse é que essa política de ajuste das contas públicas, de resolução das contas públicas, fosse uma agenda de Estado, não fosse uma agenda de um governo. Nós vamos precisar de tempo para colocar ordem, evitando pauta-bomba, corrigindo distorções, atacando ineficiências. E se nós fizermos isso, não estamos longe de conseguir a sustentabilidade da economia brasileira em termos fiscais.

Mas o país tem déficit acumulado alto, dívida alta e que está ficando cada vez mais cara. Então, é preciso fazer ajuste fiscal. Mas o presidente da República disse que se depender dele, não haverá uma medida de ajuste fiscal. O que ele quis dizer com isso? Já que o senhor está dizendo que hoje mesmo levou novas propostas. Todas essas são de ajuste fiscal, medidas que vão corrigindo e melhorando e aperfeiçoando o gasto público.

Haddad: O presidente tem uma justa obsessão, pela história de vida ,de não fazer recair sobre a população mais pobre qualquer tipo de ajuste fiscal severo, lembrando que ele próprio já no passado e agora tomou medidas para corrigir.

E o presidente Lula, às vezes eu vejo comentários a respeito da conduta dele, o presidente Lula, tudo que você leva para a mesa dele, ele leva a sério. Eu nunca vi o presidente dispensar uma medida porque ela é dura ou porque ela é impopular. Às vezes, você leva, ele puxa mas "vamos de novo essa pauta, vamos continuar". O presidente vai assimilando as necessidades de tomar as medidas.

No ano passado, nós tomamos uma série de medidas, algumas das quais não foram aprovadas pelo Congresso Nacional. E eram muito justas, na minha opinião. Mas o Congresso entendeu que, politicamente, não tinha voto para aprovar. Há medidas que vão acabar sendo votadas, mais dia menos dia, em função da necessidade do país corrigir essas distorções. E cada vez que nós tentamos, nós não levamos 100% do que a gente pediu, raramente se leva. O ministro raramente leva 100%. Isso vale para o Executivo e vale para o Legislativo. Mas nós temos tido êxito na aprovação de medidas no Congresso Nacional, e é meu dever apontar o que não foi aprovado, mas eu nunca fui ingrato a ponto de negar que o Congresso fez a parte dele.

No caso de supersalários, por exemplo, fez de conta que aprovou.

Haddad: O supersalário, que é uma coisa que tem quantas décadas de problema, hoje foi objeto de conversa com o deputado Hugo Motta. Mas agora nós estabelecemos ali um entendimento de que se o projeto que já foi votado na Câmara e está no Senado, voltar com ingredientes novos, de segurança, para corrigir essa distorção, a Câmara está disposta a reconsiderar. Então, a bola está com o Senado. Terça-feira da semana que vem eu tenho encontro com senadores e já tive alguns encontros com ministros do Supremo, com a cúpula do Judiciário. Compreendendo que juízes, sim, precisam ganhar bem. Existem indenizações que são corretas, algumas vezes os juízes estão substituindo outro em outra comarca, tem despesas de estadia, alimentação, que não teria se não substituísse. Tem coisas muito justas e nós temos que garantir um Judiciário que seja respeitado na sua dignidade, inclusive porque ele está lidando com muitos recursos públicos e privados e nós precisamos dar para o juiz uma segurança que ele vai viver condignamente e vai poder tranquilamente tomar as melhores decisões em proveito da segurança jurídica dos contratos, em proveito da segurança jurídica do Estado brasileiro. Ninguém aqui desconhece a necessidade de um Judiciário forte. O que nós estamos querendo coibir são as notícias que saem nos jornais toda semana, corrigir essas distorções.

E coibir não as notícias, mas o fato que está sendo noticiado.

Haddad: Graças a Deus está sendo noticiado, porque aí nós temos força para levar a consideração dos parlamentares e do próprio judiciário, que concordam com a necessidade de corrigir. Porque é muito difícil convencer uma população que luta no dia a dia, você sabe como é a vida do trabalhador brasileiro, não é simples, você conhece essa pessoa de que ela tem que apertar o cinto, quando tá cheio de gente, que está vivendo um universo paralelo em relação a esse trabalhador. "Poxa, eu tô ganhando aqui R$ 1.500 de salário mínimo, tem alguém ganhando R$ 300 mil?" O que essa pessoa está fazendo a mais do que eu para merecer 200 vezes o que eu ganho?", sendo um servidor público. Se é um empresário, as regras do jogos são outras para quem está arriscando. Mas no caso do serviço público, nós temos que ter a dignidade de perceber que nós podemos corrigir. Isso vale também para o acordo que nós fizemos com os comandantes das forças em relação à aposentadoria.

Ministro, o senhor conversou com os comandantes das forças. Está tudo certo na relação entre o senhor e o general, o almirante, o brigadeiro, sobre a mudança na previdência, na aposentadoria dos militares?

Haddad: Conversei com os três comandantes na presença do ministro José Múcio, que é um amigo antigo. Eu fiz questão de visitá-lo, fui a ele, os comandantes fizeram questão de estar presentes para nós estabelecermos um entendimento e um encaminhamento. O Executivo mandou, no final do ano passado, o projeto de lei, já estava esgotado o prazo para que fosse apreciado, não havia mais tempo. Aliás, o Congresso votou tudo ali em 10 dias. Nós tivemos muito êxito nisso graças ao esforço do deputado Arthur Lira e do senador Rodrigo Pacheco, que fizeram uma força-tarefa para aprovar.

Agora, com calma e com bom senso, nós temos não só esses dois projetos, supersalários e aposentadoria dos militares, mas também temos outros projetos importantes para reabrir esse debate sobre racionalidade das contas públicas, racionalização, transparência, critérios apropriados de remuneração.

Acredito que o Congresso vai saber lidar com isso e, na minha opinião, eu vejo sensibilidade hoje para algo que já se tornou quase um clamor social, de que nós possamos fazer, tomar essas medidas, até para reabrir discussão sobre outros temas relativos à despesa pública e ao gasto tributário. Apesar de serem coisas diferentes, no fundo acabam gerando o mesmo problema, que é o déficit público não ser corrigido. Vamos revisitar periodicamente o gasto tributário e a despesa primária, que é a despesa corrente do Estado. Isso tem que ser uma atividade do Planejamento e da Fazenda de rotina, para ir colocando ordem. Em dez anos em que nós acumulamos dois trilhões de reais de déficit, que foi para a dívida. E uma dívida que ficou cara.

Nós temos muitas reservas, como vocês sabem. A nossa dívida líquida ainda está girando em torno de 60% do PIB, o que foi basicamente o que o Lula herdou do governo Fernando Henrique Cardoso, em 2002. É uma dívida que tem que ser administrada. Mas o problema é o seguinte, quando você tem choque externo, descolamento do dólar, uma inflação e você tem que jogar o juro pra cima, o problema é que você joga o juro para cima sobre uma dívida grande. Esse é o problema que a gente tem que ter muito cuidado em administrar. Por isso que o ciclo de combate à inflação, esse ciclo de alta de juros, ele tem que ser muito certeiro, um prazo condizente com a necessidade do país, mas tem que ser muito calibrado para que o remédio não seja nem aquém nem além da necessidade de combater a inflação. Até porque, se for muito além, você vai ter problemas fiscais pelo lado da receita, pelo lado da atividade econômica, pelo lado do investimento. E se for aquém, você vai comprometer o poder de compra do trabalhador. É uma arte conduzir bem a política monetária em harmonia com a política fiscal.

Quando o senhor me deu a primeira entrevista, o senhor falou que ia fazer a Reforma Tributária, mas eu duvidei porque estava ouvindo essa conversa há 30 anos. Mas o senhor conseguiu fazer a Reforma Tributária, parabéns. Só que a ata do Copom fala do esmorecimento do programa de reformas. O senhor acha que isso é injusto da parte do Copom? Porque foi difícil fazer uma Reforma Tributária, tanto que 30 anos se passaram desde a primeira tentativa.

Haddad: Muitos economistas ortodoxos ou convencionais chegaram a comparar a Reforma Tributária no Brasil ao Plano Real do ponto de vista de efeitos de longo prazo. Não foi nem um, nem dois. Porque de fato foi um feito o que aconteceu.

Essa alíquota está alta demais não vai atrapalhar?

Haddad: Não, o que conta é a alíquota média, que vai estar na casa de 22%. Não é uma alíquota muito diferente da OCDE. O problema que você aponta, com razão, é que as exceções foram tantas que a alíquota padrão vai ser de 27%, 28%. Mas não vai ser 27%, 28% para todos os produtos, porque a média é 22%. Então tem a alíquota zero, tem a alíquota que vai ser 40% da padrão e tem a alíquota padrão. Se você fizer a média ponderada, você vai chegar a uma alíquota média de 22%. Isso é condizente com a experiência internacional. E se nós digitalizarmos o nosso sistema tributário, como nós estamos pretendendo fazer com a tecnologia disponível, nós vamos ampliar a base. E se ampliarmos a base, essa alíquota pode ser até menor.

Nessa mesma ata do Copom, eu queria saber a sua opinião. Porque falou de esmorecimento do programa de reformas, o senhor fez a Reforma Tributária, aumentou muito o tom em relação à inflação e, enfim, justificou esse choque de juros que o Brasil está vivendo, dois pontos percentuais até agora e mais um ponto já contratado para a próxima reunião em março. O que o senhor achou?

Haddad: Eu procuro respeitar a autonomia do Banco Central e confio nos técnicos que estão lá. E não é de hoje que nós temos a maioria dos diretores indicados pelo presidente Lula. Mesmo antes, durante a gestão do Roberto. Com alguns percalços que eu apontei nos momentos devido. No abril do ano passado, por exemplo, a discussão sobre o guidance, que na minha opinião foi uma coisa fora do padrão de uma autoridade monetária. Está no exterior, não está com o Copom reunido, está falando para um banco e dá uma declaração que desancorou as expectativas. Eu apontei ali para um problema, não estava entendendo qual é o objetivo. Então, eu tenho pontuado muito raramente quando eu penso que a coisa saiu do padrão.

Agora, se você tiver um ciclo certeiro para trazer a inflação para baixo dos 4,5% que é o teto da banda, porque isso preocupa quando escapa do teto. Porque uma coisa é você ter uma inflação declinante ainda acima do centro da meta, mas tendente ao centro da meta, como estava acontecendo. Quando você desancora e escapa do teto, a autoridade monetária tem que agir. Ela tem mandato para isso. Escapou dos 4,5%, tem que agir.

Mas na ata eles disseram que vai ficar assim até junho, acima do teto da meta, fizeram essa projeção. O senhor acha que é um exagero, levando-se em conta que está entrando a safra, o dólar está caindo ...

Haddad: Isso depende de choques, depende do doméstico e do externo. Nós não sabemos, nós temos incertezas fora. Tem a questão do dólar, que quando o dólar fica muito forte, isso afeta o mundo inteiro e afeta o Brasil. Mas eu acredito que nós podemos ter surpresas em relação às expectativas do mercado, como tivemos em relação a PIB, emprego. A economia brasileira surpreendeu positivamente o mercado em quase todos os indicadores. Só para você ter uma ideia, a previsão de crescimento do mercado em dois anos, quando nós assumimos, era de 2% em dois anos: 0,8% e 1,2%. Nós crescemos quase 7%. Quer dizer, nós crescemos três vezes mais do que o mercado projetava dois anos atrás. Então, eu acredito que nós podemos ter boas novas no front inflacionário se a política for bem conduzida e nós, com a safra, com o comportamento do câmbio, sem grandes surpresas dentro e fora, eu penso que nós podemos acomodar isso de forma adequada. Fizemos uma mudança importante. O regime de meta de inflação foi alterado pela primeira vez depois de 28 anos. O que nós introduzimos? Uma coisa que tinha no mundo inteiro menos do Brasil e em oito países, se não me engano na Turquia, que é o seguinte, a ideia da meta ser contínua. Você não vai buscar os 3% em um ano, de um ano para o outro, porque isso seria contraproducente.

O mundo inteiro entendeu, e está aí a demonstração de Europa e Estados Unidos, de que quando tem um choque, como foi o caso da pandemia e outros, e a inflação descola, você não vai buscar de um ano para o outro o centro da meta, que no caso do mundo desenvolvido é 2%.Tanto é verdade que a inflação americana não está em 2% até hoje, apesar do juro restritivo, e a Europa só agora começa a dizer que pode convergir em dois anos para 2%, e já estão com uma política monetária restritiva já há algum tempo. Então vejam vocês que o mundo desenvolvido, ele adotou uma coisa muito mais sábia, que é vocês fazerem o seguinte: olha, eu estou com um problema de inflação, eu vou ter que ter uma política monetária restritiva, o que significa um juro acima do que seria considerado normal para estabilizar o jogo, equilibrar o jogo, então ela é restritiva, mas é restritiva numa dose que não mata o paciente. Ela é restritiva para trazer gradualmente a inflação para o centro da meta.

É a defesa que eu faço. O Banco Central tem que ter inteligência e vamos ver se em junho tiver acima de 4,5%, como provavelmente estará, ele vai mandar uma carta propondo ao Conselho Monetário Nacional uma trajetória de convergência. E aí nós vamos avaliar a trajetória.

Então o senhor está dizendo que essa projeção dele faz sentido, que vai chegar em junho com a inflação acima do teto?

Haddad: Eu acredito que sim, por uma razão muito simples, a política monetária tem um delay para fazer efeito. Ela não faz efeito na hora. Então se você considerar que existe um atraso da resposta, mas que no caso do Brasil, na minha opinião, vai ser mais rápido, muito mais rápido do que se pensa, porque o choque de juros foi muito forte, então a resposta vai vir mais rápido. Penso que nós podemos ter uma acomodação mais rápida também em função disso.

Ainda que em junho eles tenham escrito uma carta para nós, eu acredito que o horizonte relevante do Banco Central já vai estar diferenciado do atual.

Ministro, o senhor entendeu por que o Gilberto Kassab falou que o senhor é ministro um fraco?

Haddad: Eu nem entendi se isso foi falado, na verdade.

Ele falou para uma plateia.

Haddad: Eu não conversei com ele, mas eu recebi muitos telefonemas de senadores e deputados do PSD e ministros do PSD, inclusive...

Com ele, o senhor não falou?

Haddad: Com ele eu não falei, mas...

O senhor consegue entender? E que resposta o senhor daria?

Haddad: Bom, primeiro que quem tem que dar resposta sobre isso é o presidente da República, que já deu no dia seguinte e falou: olha, uma pessoa que faz o Brasil crescer 7% ao ano, com a menor taxa de desemprego, aprova uma Reforma Tributária, melhora as contas públicas, aprova um marco fiscal, peraí, vamos combinar. Mas eu não vou ficar aqui disputando isso porque não é uma coisa razoável. Um partido que é da base do governo, um presidente de um partido que é a base do governo Lula.

Será que ele está vendo o senhor como um eventual competidor na possibilidade do presidente não disputar a reeleição?

Haddad: Eu não sei o que se passou para ele dizer isso, eu não sei. O que importa é o seguinte, eu penso que a entrega que nós fizemos em dois anos, eu vejo poucos paralelos no Ministério da Fazenda. Tiveram ministros relevantes, Fernando Henrique foi um ministro relevante, conseguiu em pouco mais de um ano estabilizar a moeda. Mas assim, se eu for pegar o histórico, quem foi o ministro forte? Ele falou, o Meirelles foi forte, mas entregou um déficit muito superior ao atual. Qual o critério que ele está usando? Eu não quero ficar fazendo esse tipo de disputa porque eu acho de mau gosto, inclusive ficar comparando. Isso quem tem que fazer é a população. Isso quem tem que fazer é a História, muitas vezes, porque às vezes a pessoa toma medidas que não são compreendidas no momento e vão ser compreendidas tempos depois. Eu estou muito tranquilo em relação às medidas que eu estou tomando. Não me arrependo de nenhuma delas. Podia ter errado, não é pecado...

Mas tem fogo amigo, né?

Haddad: Tem fogo amigo, fogo inimigo, aqui tem fogo pra todo gosto. (risos)

Temos um discurso coerente desde dezembro de 2022, se você pegar todas as minhas entrevistas, eu estou perseguindo os mesmos objetivos, com a mesma tenacidade, com o mesmo entusiasmo, com a mesma certeza de que o Brasil pode melhorar muito e podemos sair dessa armadilha em que nós entramos dez anos atrás. Nós entramos em uma armadilha, nós precisamos sair dela. Armadilha por razões econômicas e políticas. A política também atrapalhou muito o Brasil por causa dos conflitos que se estabeleceram em 2014, 2015. O país se desorganizou completamente. Nós precisamos sair dessa armadilha. E o que eu tenho dito e disse para o deputado Hugo Motta, presidente da Câmara, e já disse também ao presidente Davi Alcolumbre, com quem eu jantei semana passada, e vou agora me apresentar aos novos líderes do Senado, política econômica tem que ser uma política de Estado no Brasil. Nós perdemos essa consciência. Nós temos que corrigir esses dez anos, botar as coisas em perspectiva, voltar a falar de desenvolvimento sustentável e para isso não pode ter privilégio, pauta-bomba, amigos do rei, não pode ter nada disso.

O Orçamento vai ser aprovado rapidamente?

Haddad: A peça orçamentária está bem feita. Ela precisa ser só ajustada em relação às medidas que foram aprovadas depois do encaminhamento do Orçamento para o Congresso. Mas dificuldade técnica não existe de aprovar. Está bem fácil aprovar.E é uma peça, na minha opinião, mais robusta do que os orçamentos anteriores.

Ministro, o senhor está cansado de trabalheira aqui no Ministério da Fazenda?

Haddad: Depende da semana. Tem semana mais difícil.

Mas assim, cansado de querer ir embora?

Haddad: Não, eu tenho um compromisso com o presidente da República. Estou há 30 anos com o presidente da República e já passei dias bem mais difíceis do que esses que eu passo aqui. Teve um período muito complicado da vida do PT, que o país inteiro acompanhou. Eu era advogado do presidente da República, então eu já vivi tempos muito turbulentos. De 2013 a 2022, foi uma década muito turbulenta no Brasil, sobretudo para a centro-esquerda brasileira. E eu estava nos momentos mais decisivos, eu estava no olho do furacão. Agora as pessoas falam do body language, a linguagem corporal da pessoa para saber se a pessoa está cansada. Tem dia que você vai me ver cansado. Esse mês pra mim foi particularmente porque eu tive questão familiar pra resolver, então os dias que eu tirei foi pra acompanhar um parente num procedimento, não tive tempo de descansar. Mas está chegando o carnaval eu vou ter quatro dias...

E o seu futuro político?

Haddad: Já me perguntaram sobre a candidatura em 2026, eu não tenho a menor pretensão de ser candidato.

A nada?

Haddad: A nada.

Então fica no ministério até o último dia?

Haddad: Eu tenho a ideia de concluir o trabalho aqui no ministério. Eu não vejo muita questão legislativa o ano que vem. A pauta legislativa, se tudo der certo este ano, eu penso que nós vamos ter entregue um conjunto de 30, 40 medidas que eu considero um legado que vai me honrar, que vai me satisfazer. Gostei do que eu fiz aqui, estou terminando quatro anos de trabalho e vou defender esse legado e está tudo bem. Então, apesar disso, eu penso que a gestão orçamentária vai ser desafiadora até o final, não vai dar trégua para nada, não vai ter um momento de respiro, porque tem trabalho a fazer. Então, esse trabalho, que é árduo, porque é um trabalho duro demais, de você ficar botando ordem nas coisas, na rubrica A, B, C, é um trabalho super extenuante. Acredito que esse trabalho, ele não vai ser um trabalho assim que vai ser concluído rapidamente.

(Edição Ana Carolina Diniz e Luciana Casemiro)

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