A jovem democracia brasileira segue seu curso, em seu ciclo
mais extenso e profundo sob a República, sem se animar a sanar os graves
problemas que a acometem desde 1985 (vide A
crise e suas raízes). Seguindo assim, continuaremos suscetíveis a ameaças
políticas como a representada pelo bolsonarismo.
A bem da verdade, o malogro do golpismo bolsonarista se
deveu mais à inconsistência de seus estrategos (vide A
viagem redonda – de volta à política de vetos) do
que a qualquer propalada fortaleza institucional. Quem conhece nossa história
republicana sabe que intervenções militares exitosas só se produzem quando em
conexão com amplos movimentos sociais extra-caserna. A tentativa de Bolsonaro
de se manter no poder passou longe disso.
Forjado no âmbito do centrão como líder corporativo
(militar), sem ter estudado a história, Bolsonaro imaginou que a mera
mobilização do “soldado-cidadão”, à moda da República da Espada (Governo
Deodoro-Floriano, 1889-1894), junto com o toma-lá dá cá da
Nova República, seria suficiente para pavimentar seu projeto autoritário. Não
foi.
Um breve olhar sobre a Questão Militar do
século retrasado nos ajuda a entender tanto o apelo anti-sistema do militarismo
em pleno s.XXI, como também sua impotência política. A Questão Militar emerge
em 1886 ecoando a consciência de si adquirida pelos militares
depois de cinco anos de encarniçada luta do exército regular e dos corpos
de voluntários na Guerra do Paraguai (1864-1870). Na ocasião, a
governança aristocrática sobre o Exército e a Marinha foi posta à prova,
sobretudo no primeiro caso, em função das péssimas condições das forças,
desprovidas de materiais e recursos humanos apropriados, além de uma estrutura
de apoio capaz de sustentar um conflito daquela magnitude. Em consequência, os
militares passaram a perseguir, nos anos seguintes, tanto o reaparelhamento
como o adequado treinamento das Forças, além do reconhecimento político e
social de sua importância para o país.
Nenhum desses objetivos foi encampado pelo regime imperial,
que passou a temer a consciência recém-assumida em combate pelos militares como
prenúncio de contestações violentas à ordem escravista vigente. Ao contrário,
operaram de modo rápido e descompromissado a desmobilização/fragmentação das
unidades combatentes, o que foi percebido pelos oficiais como um menosprezo aos
valores e méritos militares.
Desde então, uma série de crises foram colocando lenha no
descontentamento do setor, como a da contribuição militar ao montepio (1883),
da adesão pública à causa abolicionista (1884) e da autonomia administrativa
para inspeção/punição militar (1885), esta última desencadeando uma série de
artigos na imprensa que culminou com a proibição de manifestação pública dos
militares e punições disciplinares em série (1886) que dariam ensejo à
movimentação cívico-militar que culminaria com a fundação do Clube Militar no
Rio de Janeiro (1887).
A dimensão da crise militar ficou plasmada nas metas do
Clube, que previam não só estreitar os laços de união e solidariedade entre os
oficiais do Exército e da Marinha, e defender seus interesses e direitos,
como incentivar manifestações cívicas e patrióticas em prol da honra
nacional e da dignidade militar. Ato contínuo, o Clube
reitera a posição anti-escravista dos militares enviando à Princesa Isabel uma
petição contra o engajamento de soldados em operações de captura de escravos. O
documento defendia, em tom eloquente, que a liberdade era um valor supremo para
os militares e tal designação era incompatível com a missão do Exército e a
dignidade do Império.
Todas estas tensões, como sabemos, desaguaram no golpe
contra a monarquia (1889) liderado pelo Marechal Deodoro, sob influência do
Coronel Benjamin Constant, com o apoio de republicanos civis como Rui Barbosa,
Aristides Lobo e Quintino Bocaiúva. Tinha início o ciclo de intervenções
cívico-militares que marcariam todo o s.XX.
Refletindo sobre a necessidade da arbitragem militar para a
proclamação da República, o monarquista Joaquim Nabuco afirmou de maneira
premonitória:
“A República precisa do militarismo como o corpo humano
precisa de calor; a questão é tê-lo no grau fisiológico (…). Ter o Exército
como força ativa é tê-lo demais, tirar ao Exército todo o caráter político, é
tê-lo de menos; a temperatura exata, seria tê-lo como força política de reserva
– o que é (…) uma espécie de quadratura de círculo”[i].
A percepção liberal oitocentista de Nabuco foi reiterada,
meio século depois, pela novecentista de Raymundo Faoro, que sustentava que,
“para a propaganda reacionária, o Brasil (…) seria o prisioneiro (…) (d)os
‘bacharéis de espada’”. A tese expressa por Faoro, em 1958, era que “o
afastamento total do Exército da política equivaleria a consagrar o imobilismo
oligárquico do regime (…) com a fachada política dos governadores”,
concluindo que “a força armada será, por muitos anos, o elo último de
intermediação entre o país submisso e a ordem universal em movimento”.
Àquela altura, Faoro constatava que o intervencionismo
militar, que trazia vários inconvenientes, como a politização da
caserna – que implicava, no limite, no direito de insubordinação
militar contra seus superiores – e a militarização da política,
estava limitado pela incapacidade militar de governar como ditadura sem o apoio
da sociedade e dos partidos regionais (de fato, embora não de direito) – hoje
poderíamos sustentar a mesma tese substituindo os partidos pelas lideranças
majoritárias no Congresso Nacional.
Foi precisamente esta limitação do poder militar que a
Doutrina Góis Monteiro, a partir de 1930, trouxe à baila, determinando todas as
intervenções posteriores em termos de suas chances de sucesso ou de fracasso. E
foi a ignorância desta lei de bronze do intervencionismo militar que
fez com que os linha-dura da caserna fossem reiteradamente
derrotados até 1964. Mau aluno que é de História, Bolsonaro ignorou a lição e
apostou todas suas fichas na agitação de ruas e estradas, sob o “ideário” de
uma hipótese (adulteração das urnas eletrônicas), e na cooptação do oficialato,
ignorando que a forte presença militar nos governos dos primeiros anos
republicanos (1889-1891) não bastou para a manutenção do poder, e que, mesmo
nesse período, o protagonismo dos chefes militares estava baseado não em ambições
pessoais, mas nos “interesses nacionais e patrióticos”.
Tivemos sorte que a liderança autoritária tinha esse perfil.
Mas, devemos colocar nossas barbas de molho, pois, sem as reformas
que precisamos para dar maior solidez à democracia – inclusive a reforma
moral-intelectual (de todos) –, continuaremos a contar com sorte.
*Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político,
UENF/DR[ii])
[i] Citado
por Raimundo Faoro, Os Donos do Poder: formação do patronato político
brasileiro (vol.2); ed. Publifolha/SP-2000.
[ii] Universidade
Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.
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