Por que a startup de Sam Altman distribuiu R$ 250 milhões no
Brasil?
Espalhou-se pelo boca a boca na periferia de São Pualo que
qualquer um poderia 'vender sua íris' por R$ 500
Na periferia de São Paulo espalhou-se
pelo boca a boca que qualquer um poderia “vender sua íris” por R$ 500 nas lojas
de um aplicativo de celular chamado World. A notícia logo chegou às autoridades
e pautou a imprensa. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados pediu esclarecimentos
à empresa. A imprensa cobriu a história com certa dificuldade técnica e uma
saudável dose de desconfiança. Afinal, porque uma empresa americana, fundada
por Sam Altman, do ChatGPT,
pagaria ao brasileiro que quiser escanear a sua íris?
A empresa em questão se chama Tools for Humanity
(Ferramentas para a Humanidade) e oferece o equivalente a R$ 500 em
criptomoedas a quem fizer a verificação de humanidade única por meio do World.
A Tools for Humanity criou um protocolo de
prova de humanidade única por meio do escaneamento da íris humana, traço
biométrico mais preciso que a impressão digital. O protocolo certifica que
determinada pessoa é um ser humano único — e não um robô de inteligência
artificial. A empresa argumenta que, entre outros potenciais usos, isso poderia
ser útil caso plataformas como X adotassem o sistema, marcando contas
verificadas como operadas por humanos, em contraste com contas automatizadas.
O protocolo implementa uma série de medidas de segurança para
proteger esse dado biométrico sensível. Primeiro, o usuário cria uma conta num
aplicativo móvel. Em seguida, deve se dirigir a um ponto de certificação para
escanear sua íris usando um dispositivo futurista chamado Orb. Em São Paulo, há
54 lojas onde o escaneamento pode ser agendado.
No momento do escaneamento, a íris é convertida numa
sequência, um código único que, segundo a Tools for Humanity, não é armazenado
nem no Orb nem em servidores. O que é armazenado é uma chave derivada,
produzida com técnicas criptográficas de mão única. Ela funciona como um
identificador único, distinto do sequenciamento da íris. Se a mesma pessoa
tentar se registrar novamente, o sistema gerará uma chave semelhante,
permitindo detectar e impedir cadastros duplicados. No entanto, como essas
técnicas criptográficas modificam o código e operam apenas em uma direção, não
é possível reconstruir o sequenciamento original da íris a partir da chave
derivada. Isso garante que os dados biométricos do usuário permaneçam
protegidos. É um sistema engenhoso e, até onde posso ver, seguro.
A controvérsia nas ruas e na imprensa se concentrou na
privacidade dos usuários, seja pelo medo popular de “vender a íris”, seja por
preocupações mais técnicas das autoridades de dados a respeito da robustez do
sistema de proteção à privacidade. Embora a proteção de dados biométricos
mereça preocupação, a inquietação deveria estar voltada aos propósitos
obscuros: por que um projeto com aplicações potenciais tão vagas escalou com
velocidade tão rápida e recebeu tamanho investimento?
Como incentivo à adesão, quem fizer a prova de humanidade
receberá cerca de R$ 500 na criptomoeda do
projeto, a World (a conversão para reais é simples e pode ser feita alguns dias
depois do escaneamento). Só no Brasil foram certificadas cerca de 500 mil
pessoas e, portanto, distribuídos R$ 250 milhões. No mundo todo, foram
certificadas quase 11 milhões. Significa que foram distribuídos centenas de
milhões de dólares em criptomoedas e outros prêmios. Não foi só em São Paulo
que a expansão da certificação a partir de populações pobres gerou apreensão.
Aconteceu o mesmo na Cidade do
México, em Buenos Aires e
em países africanos, onde as recompensas eram de menor valor.
Os objetivos declarados do projeto são bastante vagos, e
esses propósitos nebulosos, combinados com o altíssimo investimento, despertam
suspeitas justificadas. Em algumas entrevistas, um dos fundadores do projeto,
Sam Altman, CEO da OpenAI (empresa que faz o ChatGPT), sugere que a Tools for
Humanity está criando o que pode ser a infraestrutura tecnológica da Renda
Básica Universal — uma política de transferência de renda, como nosso Bolsa
Família, mas sem qualquer tipo de condicionante, para todos os cidadãos. No
Brasil, a ideia é historicamente defendida por Eduardo Suplicy. Altman é um
entusiasta da Renda Básica Universal e acredita que sua adoção política será
necessária para mitigar a destruição de empregos que a inteligência artificial
acarretará. Com o protocolo da Tools for Humanity, haveria uma identificação de
cada ser humano e uma carteira digital para a qual transferir os valores dessa
renda básica.
Pode ser que o objetivo da Tools for Humanity seja nobre e
altruísta como seu nome — mas, se é assim, por que a falta de transparência?
Pode ser também que busque apenas difundir o uso da criptomoeda do projeto ou
tenha outro propósito que não se pode ainda ver. Seja como for, expandir a
adesão a um protocolo por meio de uma campanha que explora a vulnerabilidade
econômica dos pobres em países em desenvolvimento certamente não parece ético.
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