Os totalitarismos se parecem: o ‘inimigo interno’ de
stalinista linhagem ressurge indiferentemente no vocabulário do atual líder
russo ou no do presidente dos EUA
Coerente defensor da liberal-democracia – e menos lido do
que ironizado por causa da antiga tese, de tom hegeliano, sobre o fim da
História –, Francis Fukuyama alarmou-se com a vitória de Donald Trump. Seria
como se os norte-americanos tivessem escolhido Vladimir Lenin, surpreendeu-se
recentemente o filósofo. Não está aqui minimamente em questão a diferença de
estatura entre Lenin e Trump. O primeiro, ao contrário de Stalin, era um
político e intelectual de vocação ocidentalizante, sabedor das taras antidemocráticas
do nacionalismo grão-russo. O segundo, um político de parcos recursos
intelectuais e admirador declarado dos traços recessivos da cultura russa,
personificados no aliado Vladimir Putin. A seu favor, um singular domínio de
palco eletrônico, usado com perícia de entertainer.
A aproximação entre o primeiro Vladimir e o
Trump dos nossos dias residiria na natureza revolucionária (ou
contrarrevolucionária) do empreendimento a que se lançaram, não obstante haja
um século entre eles. Por via da insurreição e da tomada direta do palácio do
poder, Lenin pôs em ação a tática da guerra de movimento, abandonando a guerra
de posição – conceitos que a ciência política da época importava dos campos de
batalha da Grande Guerra que assombrara os contemporâneos. De modo farsesco –
mas nem tanto, se observarmos a assustadora movimentação em curso das placas
tectônicas entre Estados e dentro de cada um deles –, Trump busca pôr em
prática uma blitzkrieg contra as instituições liberais para promover, afinal,
uma autocratização do sistema político.
A consciência do fato expressa-se entre os apoiadores do
novo presidente com extraordinária franqueza. Steve Bannon, equívoca expressão
dos setores trumpistas radicalizados, frequentemente zomba da lentidão dos
procedimentos da democracia representativa e até mesmo daquilo que seria seu
“partido” mais importante – a imprensa tradicional. Contra tal lentidão, que se
confunde com impotência, os novos revolucionários impiedosamente lançam
avalanches de falsidade. É preciso, segundo o ideólogo, “inundar a área”
diariamente com disparates, em velocidade comparável à de um projétil na saída
da arma. A Terra é chata, como se sabe, e vacinas não funcionam nem mesmo por
ocasião de pandemias.
Há método no caos aparente – e também crueldade. A
bravateada “revolução do senso comum” implica um generalizado recuo intelectual
de grandes massas em sentido antiliberal e anti-iluminista. Ela também
desfigura a percepção dos problemas reais, legitimando, por exemplo, a caça ao
imigrante – no mínimo, um criminoso em potencial – e ao dissidente político. Os
totalitarismos, de resto, se parecem: o “inimigo interno” de stalinista
linhagem ressurge indiferentemente no vocabulário de Putin ou no de Trump. Tal inimigo
deve ser neutralizado ou eliminado, incapaz como é de celebrar o “tempo da
libertação”, proclamado pelos vitoriosos, e de compreender o impulso destrutivo
implícito no revolucionarismo dos subversivos. Estes últimos, em qualquer de
suas vertentes – a tradicionalista, a anarcocapitalista, a fundamentalista de
mercado ou seja lá o que for –, têm agora um deep State a ser destruído, tal
como outrora o aríete bolchevique devia deitar por terra a máquina burguesa de
poder.
As democracias liberais veem-se submetidas a uma pressão
inédita. Trata-se, nas condições norte-americanas, menos de um lento processo
corrosivo e mais de um assalto inédito, frontal e decisivo às liberdades
fundamentais – pelo menos na intenção dos seus autores e na medida da
fragilidade das oposições. A projeção externa de um tal Estado recupera
determinações do velho imperialismo baseado na divisão do mundo em zonas de
influência, na reivindicação explícita do “direito” à expansão territorial e na
subjugação dos países mais fracos. Respeitadas as respectivas linhas de
demarcação, as diferentes autocracias se dão as mãos e fazem desaparecer do
sistema internacional as instituições que, bem ou mal, asseguraram uma ordem
baseada em regras, por mais que tenha havido violações injustificadas.
Duas guerras mundiais foram necessárias para estabelecer um
avanço que parecia consolidado: o quase banimento das anexações territoriais.
Asseguraram, ainda, uma frágil tensão entre a soberania dos Estados, antes
absoluta, e a afirmação dos direitos humanos como proteção a indivíduos e a
minorias perseguidos internamente. Agora, à intratável questão da Palestina
estamos prestes a acrescentar uma Ucrânia cronicamente inviável, despedaçada
pela Rússia, para nada falar dos dramas africanos que cobram um tributo
comparativamente maior de vítimas, se é que tem sentido este tipo de
contabilidade macabra.
Um tempo de contrarreforma visa a fazer girar a roda da
História – admitindo que exista – violentamente para trás. Nada determina que o
intento fracasse total ou parcialmente, antes de cumprir o programa máximo. Por
isso, o ataque às instituições liberal-democratas deve preocupar o conjunto da
esquerda e dos progressistas. Com o legado iluminista não se brinca.
Nenhum comentário:
Postar um comentário