Um longa-metragem veio nos devolver um sentimento de
nação, a lembrança dos direitos humanos e a sede de justiça
É claro que eu vi a cerimônia do Oscar. Noite de domingo,
carnaval longínquo e eu no sofá, de frente para a televisão. É claro que me
entediei com a torrente de breguices, mas nem foram tantas. É claro que explodi
em vibração futebolística quando Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, ganhou
como melhor filme internacional. É claro que desliguei de raiva quando não
deram o prêmio de melhor atriz a Fernanda Torres. Achei aquilo uma ignomínia,
mesmo sem nunca ter visto o filme da outra lá, que foi chamada ao palco. Nem
sei o nome. É claro que liguei de novo a TV. Ainda peguei a moça agradecendo. É
claro que não gostei.
O que não é claro é o resto. Vale um artigo. Walter Salles
não se engalanou com um smoking. Preferiu um terno preto sumário. Fina estampa
sem cores. Na segunda-feira, seu sorriso tropical encimado pelos olhos
apertados carimbou a capa dos jornais. Aplaudi outra vez. Ele merece as mais
altas condecorações da República. É um herói da cultura.
A começar da literatura. Seu filme deu
impulso mundial para o livro de Marcelo Rubens Paiva, uma obra costurada em
letras leves e memórias lancinantes, mesmo quando hilárias. É impagável a
passagem em que o escritor retrata a mãe, Eunice, despejando às escondidas
uísque nacional dentro de garrafas de puro malte escocês. Impagável e pungente.
A gente lê com prazer e pesar. A gente sorri. Depois do desaparecimento forçado
do marido, a família Paiva empobreceu, mas a dona da casa não vacilou. Para
manter o astral da casa, oferecia aos amigos bebida suspeita, sim, mas dentro
de uma imagem de fausto importado. Ela perdeu a renda, não a pose.
A cena dos vasilhames não aparece no filme. Não faz falta. A
Eunice que não se dobra está lá inteira, bela, viva e valente. A interpretação
que lhe deu Fernanda Torres, essa artista mais do que genial, reacende a
coragem que a repressão não derrubou e nos reconcilia com a História do Brasil
que o Brasil quis esquecer. Ouço contar que o filme reverteu a inércia das
burocracias estatais e arrancou lágrimas de uns tipos que não tinham a menor
ideia do que tinha sido a ditadura militar. Ouço, acredito e, de novo, aplaudo.
O cinema, quando arte, toca a alma. Quando entretenimento,
move multidões. Como Ainda Estou Aqui é arte e, queiramos ou não, é também
entretenimento, mudou mentalidades que já se tinham petrificado nas paredes
alienadas da Pátria – as paredes que não têm ouvidos. A corrida do Oscar encheu
as plateias de autoconfiança e as autoridades de excitação oportunista. Tanto
melhor. Eunice virou nome de prêmio do governo federal. Pistas do paradeiro do
corpo de Rubens Paiva começam a sair da escuridão. Os torturadores impunes se
inquietam. Vai sobrar para eles. Tomara. Um filme íntegro vale mais do que mil
comícios demagógicos. Ainda Estou Aqui, sozinho, realizou o que tribunos e
publicistas, juntos, não conseguiram.
Isso tudo é bom, mas perturba, é meio desestruturante.
Nenhum país deveria depender do Oscar para conhecer seus direitos e amar sua
democracia. Nenhum país, nem mesmo os Estados Unidos. Nenhum país, muito menos
o Brasil. Mas é assim que é. Um longametragem, destes que o espectador pacato
vai ver no fim de semana, antes da pizza, ou mesmo depois, veio nos devolver um
sentimento de nação, a lembrança dos direitos humanos e a sede de justiça.
Somos um mundo integrado pelo mercado, em termos genéricos,
e pelo entretenimento, em termos específicos. Isso quer dizer que o altar da
diversão, ou seja, Hollywood, concentra o poder de pontificar sobre o que é
legítimo e o que não passa de quimera. É comendo pipoca no escurinho que se
aprende a distinguir o certo do errado, o cômico do trágico, o aceitável do
abominável. A emoção que se compra na bilheteria é o critério da verdade.
Somos a civilização que acredita que tudo o que acontece só
acontece para nos comover. Se nos comove, a coisa existe. Se não, que vá para o
lixo. Somos consumidores insaciáveis da realidade, como se ela fosse um objeto
estético, ou um saco de pipoca. A nossa política se anulou, rebaixada e pífia.
A nossa religião se desencantou. O entretenimento as substituiu com
desumanidade, mercadoria e técnica. Somos a civilização que se reconhece no
entretenimento.
O melodrama de massa ocupou o lugar dos panfletos
incendiários e das narrativas místicas. As igrejas se converteram em show de
TV. Os autocratas, desde Hitler e Goebbels, querem controlar a indústria da
diversão. Hollywood é a nova Meca, a nova Roma, a nova Delfos. A cerimônia do
Oscar é o púlpito que define o antissemitismo (ou você não viu o discurso
longuíssimo de Adrien Brody, vencedor da estatueta de melhor ator por O
Brutalista?), a solução de dois Estados no mesmo pedaço de terra do Oriente
Médio (com a palavra, Yuval Abraham, diretor de No Other Land, vitorioso na
categoria de documentário) e os males da ditadura militar no Brasil (na voz de
Walter Salles).
Fernanda Torres não ganhou, mas ela é a maior de todas. Nada
é maior do que Hollywood, nada é maior do que o Oscar. Nada, só Fernanda
Torres.
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