Esperava-se um Lula capaz de compreender o espírito do
tempo, vislumbrar o futuro, acelerar a História e dar o salto
O GLOBO publicou recente artigo — “Um
governo navegado pelo mar” — em que apontei problemas no governo Lula.
Dias depois, texto do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro — Kakay, amigo
e apoiador do presidente — veio a público com diagnóstico constrangedor das
dificuldades do presidente. Paralelamente, pesquisas apuraram maiores quedas na
popularidade presidencial e explicitaram a tormenta no petismo.
Indiferente às críticas e apesar de alterações esperadas no
ministério, Lula segue a delongar decisões que terá de tomar: definir as linhas
de um projeto de futuro, realinhar o governo à maioria do Congresso e
estabelecer vínculos efetivos com a sociedade do século XXI. A depender disso,
encaminhar a estratégia da reeleição.
O noticiário aponta que disputas no PT
retardariam o processo. É antiga a síndrome de prima-dona da legenda, mas seria
estranho que paralisasse um político experiente como Lula. O problema é maior:
encontra-se, antes, na incompreensão de questões estruturais que pioram o
desempenho geral.
Ultrarrevolucionário, o capitalismo transforma radicalmente
a economia e a sociedade, destruindo estruturas que ele mesmo criou. Atropela
forças políticas e abala instituições que necessitarão ser reinventadas.
Enquanto isso não se conclui, o mal-estar dá vazão à antipolítica, produz
falsos profetas e charlatães.
Conforma-se um vazio incapaz de repactuar acordos e
restabelecer alianças. Só bem mais tarde, após assimilar a mudança, é que a
política, recomposta, construirá saídas e reordenará instituições. No futuro, a
decantação purgará do corpo social elementos como Donald Trump e
seus satélites, como Jair
Bolsonaro. Levará tempo, causará estragos.
Na virada dos séculos XIX e XX, dinâmica semelhante resultou
em duas grandes guerras mundiais. Atualmente, cenário comparável seria
avassalador. Vetos cruzados e a dimensão da hecatombe são o que, espera-se,
poderá evitá-la.
O que se cobra de Lula e do PT é reagirem a esse ambiente.
Porém, sem compreender o quadro, chamam de “fascismo” as sombras que enxergam.
Não estão de todo errados. Mas esse tipo de animal não surge por geração
espontânea. O vazio é a incubadora de onde a banalidade de seu mal se espalha.
Ilusoriamente, parte da esquerda resiste nas trincheiras do
caos ordenado da sociedade industrial que se esvai. Seus adversários, pior,
revivem o tempo da inquisição. Às bruxas que perseguem, chamam de “comunistas”.
Fixados no retrovisor, ambos ignoram a estrada.
No Brasil, partidos e políticos mostram-se desaparelhados
para formular e agir nesse contexto. Acomodaram-se a fundos partidários e
eleitorais, a orçamentos secretos, a guetos ideológicos. Engessada por suas
mazelas, também a universidade é incapaz de intervir plenamente.
A insatisfação com o presente e a ânsia por soluções clamam,
no entanto, por uma fuga para a frente. É provável que ainda não tenham
surgido, no planeta, indivíduos, coletivos — príncipes — à altura do desafio. A
História estabelece seu ritmo.
Esperava-se um Lula capaz de compreender o espírito do
tempo, vislumbrar o futuro, acelerar a História e dar o salto. Mas o muito que
o limite de sua liderança permitiu foi a vitória circunstancial sobre Jair
Bolsonaro e a reconexão com necessárias políticas públicas. Importante,
fundamental. Mas não suficiente.
Antes que a fúria destrua o iluminismo que a fundou, a
sociedade democrática deve reconhecer a fadiga dos materiais, reorganizar a
compreensão do mundo, elaborar projetos e programas amplos, inovadores. Para
além do WhatsApp,
formar grupos de elaboração (think tanks) sem limites setoriais, pressões
corporativas e interesses parciais — por justos que sejam. Novas lideranças
surgirão daí. Se “o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar”, reaprender
a navegar é preciso.
*Carlos Melo cientista político, é professor senior fellow
do Insper
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