Com Walter Salles empunhando o Oscar, ouve-se Guimarães
Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas (...) O mundo é mágico”
Os oficiais que, em janeiro de 1971, prenderam, espancaram e
mataram Rubens Paiva podiam tudo. Tanto podiam que empulharam o país por
décadas, impingindo-lhe uma patranha, segundo a qual ele havia sido resgatado
por parceiros. Perderam. Nos últimos minutos do domingo, “Ainda estou aqui”
levou o Oscar de
Melhor Filme Internacional.
Perderam para a memória de Eunice Paiva, sua viúva, para o
livro escrito por seu filho, Marcelo, para a arte de Walter
Salles, para Fernanda
Torres e a equipe do filme. Perderam para a memória dos povos, num
momento em que o Brasil se uniu numa torcida semelhante à das vitórias da
seleção brasileira de futebol. Podiam tudo — e perderam.
Rubens Paiva estava na cerimônia do Oscar,
num momento em que os Estados Unidos vivem um mau momento, mas a memória dos
povos prevalece, muitas vezes com a arte. Nessa hora, vale lembrar o
comportamento de dois diplomatas americanos naqueles dias: John Mowinckel e
Richard Bloomfield, ambos lotados na embaixada, no Rio.
Mowinckel era expansivo e tinha um passado incrível. Em
1944, desembarcou na Normandia e, em junho, num jipe com o escritor Ernest
Hemingway, entrou em Paris. Horas depois, ele libertou o hotel Crillon, e o
outro tomou o bar do Ritz. No Rio, Mowinckel era figura fácil em boas festas e
servia consomê gelado com uísque na sua barraca na praia de Ipanema, em frente
ao Country Club.
Bloomfield, calvo e reservado, cuidava dos assuntos
econômicos da embaixada. Uma das filhas de Rubens Paiva telefonou-lhe, contando
que o pai havia sido preso. Em 2005, ele recordaria sua reação: “Eu respondi
que era um diplomata e não podia fazer nada. Até hoje lembro a decepção dela.
Eu não podia fazer outra coisa”.
Mas fez. No dia seguinte, procurou o chefe da estação da CIA
no Rio e contou-lhe o caso. “É tarde”, ouviu. A CIA sabia que Rubens Paiva
estava morto. No dia 8 de fevereiro, quando o Exército sustentava que Rubens
Paiva havia fugido, ele encontrou-se com Eunice Paiva e relatou a conversa num
memorando ao embaixador William Rountree.
Três dias depois do encontro de Bloomfield com Eunice,
Mowinckel escreveu a Rountree dizendo que “algo deve ser feito para punir ao
menos alguns desses responsáveis — punir por julgamento público”. Pelo lado
americano, depois da eleição de Jimmy Carter, em 1976, o jogo virou.
Pelo lado brasileiro, até hoje, nada, salvo o
constrangimento imposto ao general reformado José Antônio Belham. Como major,
ele comandava o DOI do Rio, onde Rubens Paiva foi assassinado. Há uma semana,
militantes do Levante Popular da Juventude foram para a porta de sua casa com a
palavra de ordem “Ainda Estamos Aqui”.
Bloomfield e Mowinckel nada podiam fazer porque Rubens Paiva
estava morto e também porque a embaixada americana tinha relações fraternais
com a tigrada, valendo-se de seu braço militar. Tão fraternais que, em dezembro
de 1971, ao visitar os Estados Unidos, o presidente Emílio Médici fez um único
pedido ao colega Richard Nixon: a promoção a general do adido militar, coronel
Arthur Moura, um americano de ascendentes açorianos. Foi atendido.
Com Walter Salles empunhando o Oscar, ouve-se Guimarães
Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas (...) O mundo é mágico”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário