quarta-feira, 5 de março de 2025

RUBENS PAIVA CONTINUA AQUI

Elio Gaspari, O Globo

Com Walter Salles empunhando o Oscar, ouve-se Guimarães Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas (...) O mundo é mágico”

Os oficiais que, em janeiro de 1971, prenderam, espancaram e mataram Rubens Paiva podiam tudo. Tanto podiam que empulharam o país por décadas, impingindo-lhe uma patranha, segundo a qual ele havia sido resgatado por parceiros. Perderam. Nos últimos minutos do domingo, “Ainda estou aqui” levou o Oscar de Melhor Filme Internacional.

Perderam para a memória de Eunice Paiva, sua viúva, para o livro escrito por seu filho, Marcelo, para a arte de Walter Salles, para Fernanda Torres e a equipe do filme. Perderam para a memória dos povos, num momento em que o Brasil se uniu numa torcida semelhante à das vitórias da seleção brasileira de futebol. Podiam tudo — e perderam.

Rubens Paiva estava na cerimônia do Oscar, num momento em que os Estados Unidos vivem um mau momento, mas a memória dos povos prevalece, muitas vezes com a arte. Nessa hora, vale lembrar o comportamento de dois diplomatas americanos naqueles dias: John Mowinckel e Richard Bloomfield, ambos lotados na embaixada, no Rio.

Mowinckel era expansivo e tinha um passado incrível. Em 1944, desembarcou na Normandia e, em junho, num jipe com o escritor Ernest Hemingway, entrou em Paris. Horas depois, ele libertou o hotel Crillon, e o outro tomou o bar do Ritz. No Rio, Mowinckel era figura fácil em boas festas e servia consomê gelado com uísque na sua barraca na praia de Ipanema, em frente ao Country Club.

Bloomfield, calvo e reservado, cuidava dos assuntos econômicos da embaixada. Uma das filhas de Rubens Paiva telefonou-lhe, contando que o pai havia sido preso. Em 2005, ele recordaria sua reação: “Eu respondi que era um diplomata e não podia fazer nada. Até hoje lembro a decepção dela. Eu não podia fazer outra coisa”.

Mas fez. No dia seguinte, procurou o chefe da estação da CIA no Rio e contou-lhe o caso. “É tarde”, ouviu. A CIA sabia que Rubens Paiva estava morto. No dia 8 de fevereiro, quando o Exército sustentava que Rubens Paiva havia fugido, ele encontrou-se com Eunice Paiva e relatou a conversa num memorando ao embaixador William Rountree.

Três dias depois do encontro de Bloomfield com Eunice, Mowinckel escreveu a Rountree dizendo que “algo deve ser feito para punir ao menos alguns desses responsáveis — punir por julgamento público”. Pelo lado americano, depois da eleição de Jimmy Carter, em 1976, o jogo virou.

Pelo lado brasileiro, até hoje, nada, salvo o constrangimento imposto ao general reformado José Antônio Belham. Como major, ele comandava o DOI do Rio, onde Rubens Paiva foi assassinado. Há uma semana, militantes do Levante Popular da Juventude foram para a porta de sua casa com a palavra de ordem “Ainda Estamos Aqui”.

Bloomfield e Mowinckel nada podiam fazer porque Rubens Paiva estava morto e também porque a embaixada americana tinha relações fraternais com a tigrada, valendo-se de seu braço militar. Tão fraternais que, em dezembro de 1971, ao visitar os Estados Unidos, o presidente Emílio Médici fez um único pedido ao colega Richard Nixon: a promoção a general do adido militar, coronel Arthur Moura, um americano de ascendentes açorianos. Foi atendido.

Com Walter Salles empunhando o Oscar, ouve-se Guimarães Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas (...) O mundo é mágico”.

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