Subjugar o Legislativo e entrar em guerra contra o
Judiciário estão no âmago da estratégia de governos autoritários
Se há uma palavra para caracterizar o início do segundo
mandato de Donald
Trump, essa é “caos”. Ninguém consegue perceber claramente, nem mesmo
trumpistas próximos do presidente, qual o sentido e o rumo que ele pretende
imprimir ao governo e ao país. As decisões ora parecem ter sentido, ora parecem
ter sentido nenhum. Não só os norte-americanos em geral estão açodados pelo
medo, mas até republicanos e gente próxima do presidente se sente amedrontada
em agir e em relação ao futuro.
Alguns cientistas políticos afirmam que Trump se move como
se não tivesse a menor noção de Estado de Direito. Outros dizem que ele ignora
peremptoriamente a Constituição. Exemplos não faltam: a Constituição garante a
cidadania para quem nasce no solo dos EUA, mesmo se
filho de estrangeiro e, nesse caso, ele a suspendeu. A Carta Magna proíbe mais
de dois mandados a presidentes e ele afirma a intenção de buscar um terceiro.
Trump está na
condição de guerra contra o Judiciário, ao menos com parte. Aqui há uma das
características centrais dos governos autoritários atuais, que estrangulam e
asfixiam as democracias a partir da erosão de seu conteúdo republicano, fundado
na autonomia dos Três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Os novos
autocratas têm certa facilidade em submeter o Legislativo. Na medida em que as
Cortes Supremas ou setores da Justiça vinham de uma tradição democrática
anterior, caracterizada pela independência dos tribunais e pela estabilidade e
inamovibilidade dos juízes, os mandatários do Executivo encontram mais
dificuldades de dobrá-los. Dessa forma, o caminho para transformar as
democracias em autocracias civis ou cívico-militares, primeiro consiste em
tornar o Legislativo subserviente e depois mover uma guerra contra o
Judiciário, visando dobrá-lo, mas, principalmente, intervindo para quebrar
ilegalmente a composição dos tribunais superiores.
É isto o que Trump tem feito contra juízes e alguns
tribunais. É isso o que Nicolás Maduro, Daniel Ortega, Vladimir Putin e Victor
Orban fizeram. É isto o que Bolsonaro tentou fazer aqui. O plano golpista de
Bolsonaro previa a prisão ou o assassinato de Alexandre de Moraes e uma
intervenção no TSE como primeiro passo para controlar o Poder Judiciário. Esses
novos regimes com características ditatoriais, embora se valham das forças
policiais e militares, não se caracterizam como ditaduras militares. No caso da
Venezuela, Maduro define seu regime como um governo cívico-militar.
As investidas ilegais e criminosas da dupla Trump–Musk e de
outros predadores associados contra a saúde, as universidades, o ensino, a
ciência e o funcionalismo público mostram que a cúpula do atual governo age
como se sua vontade particular estivesse acima da vontade popular,
materializada nas leis e nas instituições como expressões fundantes da vontade
soberana do povo. A cúpula do governo transforma o Estado e os cidadãos em
coisas disponíveis ao arbítrio de suas vontades e de seus interesses. Com este
modo de proceder, a democracia vai se transformando em escombros e se instaura
a lei do mais forte.
Os Estados modernos se construíram como Estados soberanos e
Estados de Direito contra a concepção patrimonialista e do poder do mais forte
das monarquias absolutas. O filósofo Immanuel Kant, em Paz Perpétua, foi
categórico em condenar a concepção patrimonial: “Um Estado não é patrimônio
(patrimonium) (como, por exemplo, o solo em que ele tem a sua sede). É uma
sociedade de homens sobre a qual ninguém mais que ela mesma tem de mandar e
dispor. Enxertá-lo a outro Estado significa eliminar a sua existência como
pessoa moral e convertê-lo em coisa, contradizendo, portanto, a ideia do
contrato originário, sem a qual não se pode pensar direito algum sobre um
povo”.
Kant opõe à concepção de Estado patrimonial o Estado como
pessoa moral, fruto de uma vontade coletiva soberana. Condena o aluguel de
tropas de um Estado a outro e, também, o uso de soldados próprios em guerras
injustificáveis, orientadas para fins de conquistas patrimoniais. Os Estados
modernos se fundam na ordem internacional que expressa direitos e deveres
recíprocos entre os mesmos. E, na ordem interna, no respeito e na garantia dos
direitos dos cidadãos expressos no conjunto dos direitos humanos. Os brasileiros
não podem se esquecer que o bolsonarismo representa a mesma visão de mundo
perversa e desumana do trumpismo. Barrá-lo é um dever.
Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09
de abril de 2025.
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