sábado, 5 de abril de 2025

O ESTADO COMO COISA

Aldo Fornazieri, Carta Capital

Subjugar o Legislativo e entrar em guerra contra o Judiciário estão no âmago da estratégia de governos autoritários

Se há uma palavra para caracterizar o início do segundo mandato de Donald Trump, essa é ­“caos”. Ninguém consegue perceber claramente, nem mesmo trumpistas próximos do presidente, qual o sentido e o rumo que ele pretende imprimir ao governo e ao país. As decisões ora parecem ter sentido, ora parecem ter sentido nenhum. Não só os norte-americanos em geral estão açodados pelo medo, mas até republicanos e gente próxima do presidente se sente amedrontada em agir e em relação ao futuro.

Alguns cientistas políticos afirmam que Trump se move como se não tivesse a menor noção de Estado de Direito. Outros dizem que ele ignora peremptoriamente a Constituição. Exemplos não faltam: a Constituição garante a cidadania para quem nasce no solo dos EUA, mesmo se filho de estrangeiro e, nesse caso, ele a suspendeu. A Carta Magna proíbe mais de dois mandados a presidentes e ele afirma a intenção de buscar um terceiro.

Trump está na condição de guerra contra o Judiciário, ao menos com parte. Aqui há uma das características centrais dos governos autoritários atuais, que estrangulam e asfixiam as democracias a partir da erosão de seu conteúdo republicano, fundado na autonomia dos Três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Os novos autocratas têm certa facilidade em submeter o Legislativo. Na medida em que as Cortes Supremas ou setores da Justiça vinham de uma tradição democrática anterior, caracterizada pela independência dos tribunais e pela estabilidade e inamovibilidade dos juízes, os mandatários do Executivo encontram mais dificuldades de dobrá-los. Dessa forma, o caminho para transformar as democracias em autocracias civis ou cívico-militares, primeiro consiste em tornar o Legislativo subserviente e depois mover uma guerra contra o Judiciário, visando dobrá-lo, mas, principalmente, intervindo para quebrar ilegalmente a composição dos tribunais superiores.

É isto o que Trump tem feito contra juízes e alguns tribunais. É isso o que Nicolás Maduro, Daniel Ortega, Vladimir Putin e Victor Orban fizeram. É isto o que Bolsonaro tentou fazer aqui. O plano golpista de Bolsonaro previa a prisão ou o assassinato de Alexandre de Moraes e uma intervenção no TSE como primeiro passo para controlar o Poder Judiciário. Esses novos regimes com características ditatoriais, embora se valham das forças policiais e militares, não se caracterizam como ditaduras militares. No caso da Venezuela, Maduro define seu regime como um governo cívico-militar.

As investidas ilegais e criminosas da dupla Trump–Musk e de outros predadores associados contra a saúde, as universidades, o ensino, a ciência e o funcionalismo público mostram que a cúpula do atual governo age como se sua vontade particular estivesse acima da vontade popular, materializada nas leis e nas instituições como expressões fundantes da vontade soberana do povo. A cúpula do governo transforma o Estado e os cidadãos em coisas disponíveis ao arbítrio de suas vontades e de seus interesses. Com este modo de proceder, a democracia vai se transformando em escombros e se instaura a lei do mais forte.

Os Estados modernos se construíram como Estados soberanos e Estados de Direito contra a concepção patrimonialista e do poder do mais forte das monarquias absolutas. O filósofo Immanuel Kant, em Paz Perpétua, foi categórico em condenar a concepção patrimonial: “Um Estado não é patrimônio (patrimonium) (como, por exemplo, o solo em que ele tem a sua sede). É uma sociedade de homens sobre a qual ninguém mais que ela mesma tem de mandar e dispor. Enxertá-lo a outro Estado significa eliminar a sua existência como pessoa moral e convertê-lo em coisa, contradizendo, portanto, a ideia do contrato originário, sem a qual não se pode pensar direito algum sobre um povo”.

Kant opõe à concepção de Estado patrimonial o Estado como pessoa moral, fruto de uma vontade coletiva soberana. Condena o aluguel de tropas de um Estado a outro e, também, o uso de soldados próprios em guerras injustificáveis, orientadas para fins de conquistas patrimoniais. Os Estados modernos se fundam na ordem internacional que expressa direitos e deveres recíprocos entre os mesmos. E, na ordem interna, no respeito e na garantia dos direitos dos cidadãos expressos no conjunto dos direitos humanos. Os brasileiros não podem se esquecer que o bolsonarismo representa a mesma visão de mundo perversa e desumana do trumpismo. Barrá-lo é um dever. 

Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09 de abril de 2025.

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