Seus valores eram universais, e sua moral danada de
límpida
Sendo a vida um rio que precisa ser atravessado, cabe-nos
construir uma ponte capaz de nos sustentar do primeiro engatinhar ao último
arrastar de perna. Não é tarefa pouca. Tanto assim que boa parte dos bípedes
acaba desperdiçando fortunas ou aflições erigindo passarelas impermanentes,
ocas, que desabam ao primeiro infortúnio e acabam varridas da História. José
“Pepe” Mujica, que completaria 90 anos nesta terça-feira, nunca confundiu o ser
com o ter. Atravessou o tumultuoso rio de sua vida sem precisar escorar-se em
vanglórias nem vitimizações. Sua ponte a tudo resistiu. Fora construída de
material nobre e raro: a simples decência humana.
A julgar pelos registros nas mídias, elogiosos segundo a
régua convencional de atributos, havia morrido um “símbolo da esquerda”, um
“ícone da esquerda” ou, no máximo, um “herói da esquerda da América Latina”.
Assim fazendo, apequenaram o morto. Isso porque Mujica foi, antes de tudo, um
homem inteiro. Seus valores eram universais, e sua moral danada de límpida.
“Dediquei a vida a mudar o mundo e não mudei nada, mas não importa — dei
sentido à minha vida sonhando, lutando, pelejando. Parto daqui feliz”, explicou
ao jornal El País no ano passado, já bastante doente.
A trajetória política do uruguaio José
Alberto Mujica Cordano é conhecida: nascido em ambiente rural nos arredores de
Montevidéu, aderiu cedo ao movimento guerrilheiro Tupamaro, foi preso quatro
vezes, conseguiu fugir duas — uma das quais com lances cinematográficos —, mas
acabou recapturado em 1972 para mofar ou enlouquecer no cárcere. O filme “Uma
noite de 12 anos”, de 2018, dirigido por Álvaro Brechner, retrata bem o que
foram seus 12 anos de cativeiro na ditadura militar uruguaia. Sete deles foram
passados em solitária, numa cela-buraco de pouco mais de 1 metro quadrado,
privado de leitura ou raio de sol. Espancado e torturado, chegou a comer sabão
e alucinar.
Quando finalmente libertado, estava com 50 anos de idade.
Não perdera a razão, nem a humanidade. Nem a companheira de militância Lucía
Topolansky, com quem se casaria em 2005 e que o acompanhou até o final. Estava
pronto para retomar a política redemocratizada e recebeu dos patrícios votos e
aprovação — primeiro como membro do Congresso, depois como presidente da
República. Ao contrário do que ocorreu na Argentina e no Chile pós-ditadura,
decidiu não processar os militares responsáveis pela tortura, mortes e
desaparecimentos ocorridos nos porões uruguaios. Tampouco se arrependeu das
várias ações de guerrilha urbana de que participou. “Na vida há feridas que não
têm cura, é preciso aprender a continuar a viver”, dizia. Assim fez.
Poucas horas depois do anúncio de sua morte, um vídeo
caseiro de menos de três minutos mostrava uma bailarina anônima numa viela
deserta de Montevidéu. É noite. À frente de um muro descascado com os dizeres
“GRACIAS PEPE POR TANTA POESIA” e de uma dezena de velas acesas no chão, a
bailarina dança um dos solos mais belos do “Lago dos cisnes”, de Tchaikovsky.
Difícil imaginar outro líder mundial que gere manifestação de pesar tão
significante. Vez por outra, poesia, política e humanidade conseguem conviver e
frutificar. São raras essas vezes — somente quando o ser humano foi maior que
sua obra estritamente política. Assim foi com o sul-africano Nelson Mandela,
assim foi com o argentino Papa Francisco e assim foi com o americano Jimmy
Carter.
No seminal livro de Primo Levi “É isto um homem?”, o
sobrevivente de Auschwitz nos intima a refletir sobre os abismos e cumes do que
é ser humano. Talvez lhe fizesse bem saber que, para Mujica, o significado da
vida pode ser encontrado no que nos diferencia das demais espécies — graças a
nosso desenvolvimento intelectual, e se exercitarmos nossa consciência, podemos
dar à vida algum sentido, escolher uma causa, vivê-la. Mujica diz ter
conseguido ser livre por ter escapado da lei da necessidade. Levi não teve essa
oportunidade. Coube-lhe a missão desumana de narrar o que não suportamos ver.
Ainda assim, também ele inicia seu livro máximo com um poema: “Se questo è un
uomo”.


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