Eu sou apenas um leitor. O que eu quero dizer com isso? Eu
aprecio os livros, mas não tenho formação de crítico literário. Nem de longe.
Sou um historiador que gosta de ler. Somente isso. Nada muito especial conforme
se pode ver.
Contudo, vou ousar um pouco e tecer algumas observações a
respeito de um livro que li de uma tacada só, como se diz. Trata-se de Zé
da Grota e outras histórias, de Sáulo José Alves.
A obra é um documento social, descrevendo a vida rural
brasileira de forma simplesmente magistral. Raramente li um livro tão
prazeroso, de trama tão bem conduzida. Um livro cuidadoso, eu diria até. Um
cuidado que se estende à maneira de contar, com um domínio absoluto da arte da
escrita. Uma combinação rara entre a linguagem interna – ou a forma como a
história é contada – e aquilo que é mostrado por essa mesma linguagem nas
páginas do livro, o que chamamos de conteúdo. O como e o quê totalmente entrelaçados.
Ou a forma não é o conteúdo da Arte?
Como tantos outros brasileiros, tenho
origem rural. Um pé na roça, como se dizia antigamente. Quando eu nasci, no
início da década de 50, um brasileiro em cada dez vivia no campo. Minha mãe
nasceu em uma fazenda, em Carangola, na Zona da Mata de Minas Gerais, em 1922,
em uma família de lavradores. Seus avós plantavam goiaba para fazer doce no
tacho. Também cultivavam café. Por parte de pai, um setor da família era do
Norte Fluminense e outro da entrada da região missioneira, no Rio Grande do
Sul. Como dizia minha avó paterna, “uma gente peleadora, de faca na bota”.
O campo brasileiro era assim, por vezes rude, por momentos
muito austero, mas extremamente verdadeiro sempre. E belo como um copo de ouro,
se me permitem recorrer a uma imagem de João Guimarães Rosa.
Zé da Grota e outras histórias nos
remete a outro grande livro: Vidas secas, de Graciliano Ramos,
também ele uma sucessão de contos de tal maneira entrelaçados que adquire uma
feição de romance. Pouco importa, no fundo: histórias não deixam de ser
histórias pelo fato de serem mais ou menos longas. Ou de terem poucas ou muitas
páginas. A função das histórias, nunca é demais lembrar, é outra. Ela atua no
plano qualitativo e devem nos fazer sonhar. E eu não conheço nada mais
envolvente do que o sonho, essa imaginação que liberta, esse voo fora das asas.
Lendo este livro de Sáulo José Alves eu reforço a minha
opinião de que a sociedade é maior do que o Estado. É ela que produz Cultura,
que gera as riquezas materiais também - riquezas que o Estado tende a
distribuir tão mal. Como tenho escrito vez por outra, quase ninguém sabe quem
mandava e desmandava em nosso país quando eclodiu a epopeia do Quilombo dos
Palmares, em Alagoas atual. Mas todos sabemos quem foi Zumbi. Qual o nome do
governante espanhol ou português, pouco importa, que reprimiu a ferro e fogo a
belíssima experiência dos jesuítas e dos guaranis na região das Missões?
Ninguém sabe ao certo. Mas todos nós conhecemos Sepé Tiaraju, o bravo líder
indígena. E quem foi mesmo que ordenou a repressão aos Conjurados de Minas
Gerais, em 1789? Quase todos nós ignoramos seu nome. Mas não há quem
desconheça Tiradentes, Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga,
Aleijadinho e outros grandes da época. Só para encerrar: quem presidiu a
República quando ocorreu o levante do Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, no
Rio Grande do Sul, dando início à chamada Coluna Prestes? Talvez seja
irrelevante hoje. Mas todos nós respeitamos a figura de Luiz Carlos Prestes, o
Cavaleiro da Esperança.
Com a Cultura ocorre algo semelhante. Ou seja, ela se
inscreve na pele da sociedade, muitas vezes até como uma dolorosa cicatriz,
revelando suas mazelas e sofrendo perseguições. Nada revela mais o que de fato
somos quanto a Literatura que escrevemos. Alguém já se referiu ao fato de que
antes de surgir a Itália havia a Literatura italiana. No Brasil fomos quase
além disso: antes de surgir o próprio Estado nacional, em 1822, já tínhamos um
sentimento de brasilidade formado, devido à literatura de Gonzaga e Cláudio
Manoel, à pintura de Ataíde, aos frontispícios ondulados de Aleijadinho.
É aqui que eu desejo chegar: o livro de Sáulo José Alves se
inscreve nessa tradição que faz coexistir o erudito e o popular, o moderno e o
tradicional, a reflexão e a participação, as diferentes matrizes culturais
também. Escrevi uma vez que autóctone no Brasil é a síntese, a mescla. A nossa
cultura é como uma árvore de tronco antigo e galhos novos. Afinal, a língua
portuguesa possui 800 anos. Os mitos indígenas, alguns milhares de anos. O
mesmo podemos dizer dos nossos orixás. A síntese (isto é, os galhos) é que é
nova, propriamente. Zé da Grota e outras histórias carrega
tudo isso em suas páginas. É justamente o que faz a sua grandeza. Ainda bem.
O interior do Brasil é muito rico culturalmente. Temos o
Campo das Vertentes, chão mineiro desta obra de Sáulo José Alves. Como temos as
artesãs do Jalapão, em Tocantins, com sua arte com base no capim dourado. Isso,
para não aludirmos às toadas e modas de viola contagiantes pelo nosso sertão
afora. Mesmo assim, eu apontaria que um livro como este, a bela obra Zé
da Grota e outras histórias, se ressente de um movimento cultural que seja
digno dele. E isso passa pela retomada dos suplementos literários e pela
atuação de críticos literários novos, da mesma qualidade de Agripino Grieco,
Alceu Amoroso Lima, Nelson Werneck Sodré, que tanta falta faz à nossa Cultura.
Pois houve um período em que os jornais eram verdadeiras salas de aula,
formando e informando o público leitor. Ainda bem que em Tiradentes existe essa
pequena editora Aquarius Produções Culturais para entrar nessa briga, ou preencher
essa lacuna.
Infelizmente, o Brasil está sem projeto de nação. Isto é,
sem o que poderíamos denominar por contra elite, ou o setor da elite que passa
um acordo cultural com as camadas populares, propondo-se a interpretar e mesmo
representar os seus anseios por uma vida mais digna. Daí as dificuldades
vividas por tantos setores da vida nacional, em particular o setor literário.
Reatar com esse fio da meada é imprescindível. Somente assim poderemos voltar a
dar o justo valor a uma obra como essa, que merece estar nos Anais da
Literatura nacional.
*Ivan Alves Filho, historiador.


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