‘Proteção da democracia’ tornou-se sinônimo de ‘defesa da
segurança nacional’. Adquiriu o mesmo valor axiológico-normativo
Em 2021, o Congresso cumpriu seu papel na tarefa de prover
proteção jurídica à democracia. Revogou a Lei de Segurança Nacional (Lei
7.170/1983) e aprovou a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei
14.197/2021). Com isso, o País abandonou uma legislação orientada à proteção
ideológica do Estado e, em seu lugar, estabeleceu uma normativa de proteção das
instituições. Gestada há décadas, a revogação da Lei 7.170/1983 teve um estopim
concreto: o uso que o governo Bolsonaro vinha fazendo da legislação herdada dos
tempos da ditadura para criminalizar opositores políticos.
Não basta, no entanto, ter uma nova lei adequada. Qual é a
jurisprudência que o Judiciário tem promovido desde então? A aplicação da Lei
14.197/2021, feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) está sintonizada com as
liberdades e garantias próprias do Estado Democrático de Direito? A defesa da
democracia não visa a perseguir inimigos políticos, tampouco a discriminar uma
corrente de pensamento, mas a assegurar o funcionamento das instituições,
punindo, dentro do devido processo legal, as condutas proibidas.
Responder a essas perguntas envolve, em
primeiro lugar, verificar a fundamentação das decisões judiciais. A
legitimidade democrática do Judiciário não decorre da sintonia de sua atuação
com a opinião pública, mas de uma sólida fundamentação – constitucional e legal
– de suas decisões. Déficit de fundamentação é déficit democrático. E, por
óbvio, não se defende a democracia transigindo com caminhos autoritários.
Fundamentar uma decisão judicial não se reduz a citar a
“defesa da democracia”, como se fosse uma fórmula mágica. É preciso justificar
– explicar, expor, demonstrar de maneira concreta – a razão pela qual tal
comportamento ou publicação em rede social fere o ordenamento jurídico
brasileiro. Essa exigência não é formalismo. É consequência do princípio,
estruturante da República, de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5.º, II da Constituição).
É constrangedor, mas temos de admitir. Em várias decisões do
STF, a “proteção da democracia” tornou-se sinônimo de “defesa da segurança
nacional”. Adquiriu o mesmo valor axiológico-normativo do conceito anterior,
recebendo idêntico enfoque interpretativo. Só mudaram as palavras. Em algumas
vezes, a menção à democracia foi usada como carta branca para atuar além dos
limites institucionais; por exemplo, em detrimento do direito de defesa ou do
princípio do juiz natural. Ora, isso não é defesa do regime democrático, mas
deturpação das palavras, deturpação dos conceitos jurídicos, deturpação do
poder.
Um parênteses. Não acredito que estejamos numa ditadura
judicial. Congresso e Executivo funcionam livremente e, não menos importante,
existe revisão das decisões judiciais. Além disso, são muitos os elementos que
indicam a ocorrência de crimes contra a democracia. No entanto, como o próprio
STF reconheceu em outros casos, o modo como o Estado atua na perseguição
criminal é fundamental. Não é um vale-tudo.
Há também o tema da estabilidade da interpretação da lei e
da própria compreensão dos fatos. Desde os primeiros casos do 8 de Janeiro, o
STF entendeu que havia ali não apenas depredação do patrimônio público. No
entanto, ao analisar o ofício da Câmara relativo ao deputado Alexandre Ramagem,
a 1.ª Turma do STF considerou que os crimes contra o regime democrático
imputados ao parlamentar tinham sido praticados antes de sua diplomação.
Suspendeu, assim, o andamento da ação apenas em relação aos crimes de dano qualificado
e deterioração de patrimônio tombado, que teriam sido praticados após a
diplomação. Mais do que procurar a interpretação mais draconiana em cada
circunstância, a defesa da democracia demanda coerência ao longo do tempo na
análise da lei e dos fatos.
A qualidade da defesa da democracia promovida pelo STF
também tem sido afetada pela compreensão da própria Corte sobre alguns temas
processuais. Há quatro pontos especialmente problemáticos: a inaplicabilidade
do juiz de garantias a órgãos colegiados; a interpretação expansiva do
instituto da conexão, ampliando a competência jurisdicional; a atuação de
ofício do juiz; e o tratamento desigual dado às partes (acesso às provas,
distinção entre testemunhas de acusação e de defesa).
Esse último tópico é notoriamente contraditório, pois remete
ao que ocorria durante a vigência das diferentes edições da Lei de Segurança
Nacional, nos tempos da ditadura. Com a aplicação do Código de Processo Penal
Militar, havia um tratamento processual dos acusados incompatível com a
presunção de inocência e o direito de defesa.
O Congresso revogou a Lei 7.170/1983. Ela já não está mais
vigente. Mas há outro aspecto, ainda mais fundamental: com a Constituição de
1988, a sociedade brasileira revogou o espírito da Lei de Segurança Nacional. O
Legislativo fez sua parte. Que o Judiciário construa sua jurisprudência de
defesa da democracia fiel às regras e aos princípios constitucionais,
provendo-lhes plena efetividade.
*Advogado


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