Na prática, arranjos político-eleitorais se sobrepõem a
critérios técnicos e jogam para escanteio o planejamento de longo prazo
O Brasil tem coisas das quais pode orgulhar-se: somos uma
democracia com Três Poderes estabelecidos, Ministério Público ativo e imprensa
livre. Mas há outro lado que causa indignação: ocupamos o último lugar no
ranking de competitividade industrial da Confederação Nacional da Indústria;
estamos entre os piores do mundo no Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes, o Pisa; e entre os 15 mais desiguais, pelo índice de Gini. Em
combate à corrupção, também vamos mal. No ano passado, tivemos nossa pior colocação
no Índice de Percepção da Corrupção, calculado pela Transparência
Internacional: 107.º lugar entre 180 países.
Pode-se apontar várias causas para esses males, como o
modelo educacional ou a carga tributária, mas esses debates pouco avançam
diante da enorme divergência ideológica sobre o que fazer. Felizmente, existe
um caminho mais direto para construir soluções: a gestão do Orçamento. Esse
caminho foi, inclusive, pensado há muito tempo: o artigo 165 da Constituição
federal, no 9.º parágrafo, exige lei complementar para estabelecer normas da
gestão financeira e critérios para a execução das emendas parlamentares. Por
incrível que pareça, em 37 anos, desde a promulgação da Carta, isso ainda não
foi feito.
A Constituição também estabelece que a
República deve construir uma sociedade justa, garantir o desenvolvimento,
erradicar a pobreza e reduzir desigualdades. Esses objetivos, no entanto, não
serão alcançados sem a administração eficiente do Orçamento e a
responsabilização por fracassos e desvios. E nada representa melhor a má gestão
e o desperdício do dinheiro público do que a forma de distribuição das emendas
parlamentares. Há verbas destinadas a Estados sem vínculo com o parlamentar,
transferências milionárias para microcidades, desvios envolvendo parentes de
congressistas e esquemas de corretagem e aluguel de emendas.
Tudo isso é sintoma de um sistema que se deteriorou. Até
2015, um deputado ou senador era eleito com a roupa do corpo, cargos para
formar uma equipe e verba de gabinete. Hoje, cada um deles tem garantidos,
respectivamente, R$ 40 milhões e R$ 70 milhões por ano só para emendas. Além
disso, cada bancada estadual tem R$ 300 milhões por ano. Trata-se de um modelo
tipicamente brasileiro, e é ilusão achar que esse dinheiro está sendo bem
aplicado. Estudos do Ipea e da Rede Gife sobre emendas para a saúde, por exemplo,
mostram que os recursos não vão nem para as cidades que mais precisam nem para
os programas destinados a resolver os principais problemas. E, como as emendas
são uma verba do governo federal, definida pelo Congresso e executada pelas
prefeituras, ninguém é responsabilizado pela má aplicação.
Mas, e o controle? Pois bem: em dez anos, as emendas
saltaram de R$ 5 bilhões para mais de R$ 50 bilhões do Orçamento anual da
União, só que a fiscalização não evoluiu. O Tribunal de Contas da União, a
Controladoria-Geral da União e o Ministério Público Federal não têm como
fiscalizar cada Estado e cada cidade. Já na ótica estadual ou municipal, as
emendas parlamentares federais não diferem das demais verbas: integram o
orçamento local e seguem os mesmos processos de contratação, pagamento e
fiscalização.
Faz sentido, então, o Supremo Tribunal Federal ser chamado a
atuar. O ministro Flávio Dino bloqueou o pagamento de emendas sem o nome do
parlamentar que as indicou e nos casos em que o dinheiro federal se misturou
com o municipal. É o que ocorre com as milhares de emendas Pix e as
transferências para os fundos de saúde, que entram diretamente na conta
corrente do município, eliminando qualquer possibilidade de transparência.
A pulverização dos recursos também chama a atenção. Em 2024,
os parlamentares fizeram 86 mil alocações de verbas para 5.530 dos 5.570
municípios. Em Minas Gerais, por exemplo, um único senador mandou recursos para
183 municípios – é pouco provável que ele conhecesse as prioridades de cada um.
Na prática, arranjos político-eleitorais se sobrepõem a critérios técnicos e
jogam para escanteio o planejamento de longo prazo.
Para reverter esse cenário de alocações sem planejamento,
deve haver um debate nacional sobre critérios de distribuição e
responsabilização, como exige a Constituição. Que os parlamentares confrontem
ideias na tribuna e cheguem a consensos e soluções efetivas, com metas de curto
prazo e visão de futuro. Assim, o Congresso pode deixar de ser intermediário de
verbas e assumir seu papel estratégico: direcionar políticas públicas e
fiscalizar o Executivo.
Pelo peso que as emendas parlamentares ganharam na
organização política brasileira, disciplinar sua alocação pode dar início a um
círculo virtuoso, que se desdobrará na gestão orçamentária de Estados e
municípios. Esse debate transformador, entretanto, não será promovido
espontaneamente pelo Executivo e pelo Legislativo nem pela ação isolada dos
órgãos de controle. Cabe ao setor produtivo e às organizações da sociedade
civil liderarem essa mudança. É a oportunidade de o Brasil se tornar um país em
que políticos são eleitos por sua capacidade de solucionar os problemas da
Nação, o que começa com a gestão responsável do dinheiro.
*Engenheiro de computação, é idealizador da central das
emendas


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