Enquanto for liderado por um narcisista como Netanyahu,
país continuará sua insana marcha de afirmação pela força
Dias atrás, com Israel espremido
entre a glorificação de sua soberania militar e a angústia de viver em nova
frente de guerra, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu tentou uma abordagem
churchilliana para falar à nação. O pronunciamento se pretendeu solene. Teve
como pano de fundo o hospital Soroka de Beersheva, atingido pouco antes por um
míssil iraniano que causou ferimentos e danos.
— Isso evoca o povo britânico durante a blitz — proclamou
“Bibi”, referindo-se à chuva de bombas nazistas sobre o Reino Unido na
Segunda Guerra.
Pediu sacrifícios. Para não variar, isso resulta em
desastre. Desde o 13 de maio de 1940, todo líder de guerra que fala em
sacrifícios se sente rugindo como o leão Winston Churchill na Câmara dos
Comuns:
— Não tenho nada a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas
e suor...
O que ofereceu Netanyahu ao país que governa há 17 anos? Um
sacrifício familiar que julgou à altura do momento histórico:
— Cada um de nós carrega um custo pessoal, e nossa família
não é exceção. Esta é a segunda vez que o casamento de meu filho Avner foi
cancelado por ameaças de mísseis. O custo pessoal para sua noiva também é
grande.
Para piorar o que já era péssimo, ele ainda
ressaltou o heroísmo da noiva, Ruth, por carregar o fardo do adiamento nupcial.
Tamanha insensibilidade deixou em choque os familiares dos
reféns ainda em mãos do Hamas. Inutilmente indignados também ficaram os
ruidosos opositores do governo. Tudo em vão. Enquanto o país for liderado por
um narcisista sem freios como Netanyahu, Israel continuará sua insana marcha de
afirmação pela força.
A marcha é insana porque, como escreveu o historiador
israelense Amit Varshizky em ensaio de 2024, “uma sociedade tão indiferente à
morte e à destruição já perdeu a guerra”. O acadêmico, que pesquisa nazismo e
antissemitismo na universidade alemã de Iena, analisa a perda de compasso moral
da sociedade israelense. Uma parcela dessa erosão Israel traz do nascedouro. O
país fundado sobre o trauma histórico do Holocausto, que se viu compelido a
lutar pela existência desde o primeiro dia, se transformou numa entidade
espartana que santifica a força, argumenta Varshizky. A política sempre girou
em torno de um único princípio central: a segurança. Seus sucessivos governos
foram eleitos e derrubados com base no sentimento de segurança que conseguiam
incutir à população. O compasso moral foi se perdendo quando a força por
instinto de sobrevivência passou a princípio definidor da sociedade.
— A catástrofe já aconteceu — sustenta Varshizky, apontando
especificamente para a desumanização de Gaza. — A questão
agora é saber como Israel se erguerá das cinzas.
Ultimamente as cinzas parecem se acumular. Foi pelas telas
do extremista Canal 14, cuja notoriedade cresceu a partir do ataque terrorista
de 7 de outubro de 2023, que o radialista Elad Barashi postou incendiária
arenga nas redes sociais, semanas atrás:
— Gaza merece morrer. Merecem a morte. Homens, mulheres e
crianças, de todas as formas possíveis. Devemos simplesmente executar um
Holocausto neles. Sim, podem ler de novo, H-O-L-O-C-A-U-S-T-O. Se depender de
mim, câmaras de gás. Trens da morte. E quaisquer outras formas de morte cruel.
Sem medo nem hesitação. Sem problemas de consciência nem misericórdia.
Pois é de misericórdia e problemas de consciência que Israel
mais necessita no momento — armas, inclusive nucleares, e resiliência o país já
tem de sobra. Coube ao jornalista Etan Nechin, correspondente em Nova York do
diário israelense Haaretz, fazer um relato contundente de recente viagem com o
filho ao país natal. Observou uma sociedade que vive uma fantasia:
— Donald Trump trará
os reféns de volta, o Irã entrará em
colapso, os palestinos de Gaza sumirão, despachados para Somália ou Finlândia. Alguma
coisa acontecerá. Qualquer coisa, exceto olharmos para dentro de nós mesmos.
Pelo seu relato, os israelenses vivem em estado de gangorra
maníaco-depressiva: ora estão como que afundados nos túneis que aprisionam os
reféns ainda vivos, ora tagarelam, eufóricos, com a mais recente salva de
mísseis certeiros no Irã.
— Os dias se arrastam — escreve Nechin. — Vão de uma
passeata à próxima, de um refém a outro, um soldado israelense morto, mais
quatro, um cessar-fogo começa e acaba, delegações de negociadores chegam e
partem de Doha,
mísseis são disparados. Nada muda. Talvez sejamos salvos de novo pelo Domo de
Ferro.
Mas será uma vitória que terá gosto de colapso. Colapso de
uma sociedade que deixou de acreditar em sua capacidade de se consertar por
dentro.


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