As reformas em curso propõem restringir o direito de
protesto com base em critérios vagos como "ruído excessivo" ou
"perturbação injustificada"
"Esta é a mais grave ameaça às liberdades civis em uma
geração." Assim inicia o editorial do The Guardian, de 21 de junho de
2025, ao denunciar as propostas legislativas que, sob o pretexto de fortalecer
a autoridade estatal, podem desfigurar garantias centrais do Estado de Direito
britânico.
As reformas em curso propõem restringir o direito de
protesto com base em critérios vagos como "ruído excessivo" ou
"perturbação injustificada". Paralelamente, pretendem blindar certas
decisões administrativas contra a revisão judicial, especialmente quando
relacionadas a políticas públicas de "alta política".
A justificativa invoca estabilidade e eficiência. Mas o
efeito, como bem observa o editorial, é o esvaziamento silencioso de liberdades
conquistadas historicamente. Como advertia A. V. Dicey, a essência do rule of
law está em submeter todo exercício de autoridade à legalidade — e não em
proteger o poder de sua própria responsabilidade.
O direito de reunião, consagrado ainda no
século 19, sempre foi um dos pilares não escritos do constitucionalismo
britânico. Walter Bagehot reconhecia que a vitalidade do sistema parlamentar
dependia não apenas do governo da maioria, mas da livre circulação do dissenso.
Onde se cerceia a expressão pública, o pacto democrático se empobrece.
O controle judicial — mesmo em sistemas sem constituição
codificada — representa uma âncora contra o arbítrio. Desde Marbury v. Madison,
nos Estados Unidos, a revisão judicial das decisões políticas tem sido
concebida como garantia de integridade constitucional. Holmes Jr. alertava que
a Constituição não é um pacto suicida, mas tampouco pode ser reduzida a uma
formalidade irrelevante diante do poder.
As propostas britânicas evocam a ideia de "zonas de não
decidibilidade" — categorias de decisão pública que escapariam à
jurisdição, à semelhança do conceito de "poder neutro" formulado por
Carl Schmitt. Mas, como mostra a experiência histórica, nenhum espaço decisório
é verdadeiramente neutro quando se trata de direitos fundamentais.
A crítica a esse modelo não é restrita à doutrina. Juristas,
ex-membros da Suprema Corte, acadêmicos e entidades da sociedade civil têm
reiterado o risco de comprometer a legitimidade democrática por vias legais.
Na tradição francesa, Michel Troper lembra que o direito não
se impõe apenas por estar escrito, mas porque é interpretado e aplicado por
instituições dotadas de autoridade. A Constituição, para existir em sentido
efetivo, depende de uma jurisdição que a faça valer.
É essa jurisdição que transforma comandos em normas, textos
em limites, vontade em legalidade. Sem ela, a Constituição é apenas promessa.
Com ela, é compromisso.
A eliminação do Estado de Direito pode ocorrer por golpes.
Mas sua erosão mais comum — e frequentemente mais difícil de detectar — dá-se
por reformas legitimadas, discursos técnicos e procedimentos formalmente
regulares. Desloca-se das margens para o centro, banalizando exceções,
normatizando restrições, dissolvendo a resistência institucional.
O debate sobre reformas do sistema de Justiça é legítimo. O
direito, como advertia Jellinek, é uma construção histórica e, portanto,
sujeito a revisões. Mas reformar estruturas de garantia exige prudência
institucional, escuta democrática e responsabilidade com a posteridade.
Alterações mal calibradas podem comprometer não apenas a forma, mas a
substância da democracia.
No caso britânico, a ausência de constituição escrita amplia
os riscos. O sistema se sustenta em precedentes, convenções e uma cultura de
autocontenção. Enfraquecer essas engrenagens, ainda que em nome da ordem,
equivale a comprometer os fundamentos do pacto constitucional.
O Brasil, com sua Constituição de 1988 e cláusulas pétreas,
dispõe de salvaguardas normativas mais explícitas. Ainda assim, não está imune
à tentação de reformas que, sob o pretexto de combater o "ativismo"
ou restaurar a autoridade, terminam por reduzir espaços de contestação e
fiscalização.
Preservar o Estado de Direito não é uma tarefa passiva.
Exige vigilância permanente, cultura jurídica sólida e compromisso com a razão
pública. Como ensina J. J. Gomes Canotilho, a Constituição não é apenas um
texto jurídico, mas um projeto normativo de civilização, cujo sentido se afirma
na efetividade das garantias e na contenção do poder.
Norberto Bobbio, em O futuro da democracia, já advertia
que as liberdades fundamentais e o poder democrático são mutuamente
condicionados: é pouco provável que um Estado não liberal garanta uma
democracia verdadeira — e improvável que uma democracia degradada consiga
preservar as liberdades. Quando um cai, o outro não tarda a acompanhá-lo.
*Bruno Dantas, ministro do Tribunal de Contas da União,
professor da UERJ e da FGV


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