Confira abaixo, texto de Atila Roque, publicado no jornal
Folha de S.Paulo em 2023.
Atila Roque, Folha de S.Paulo
É diretor regional da Fundação Ford no Brasil. Mestre em
ciência política pelo IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro) e bacharel em História pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de
Janeiro). Ex-diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil e membro do
conselho diretor do GIFE.
A definição, no calendário das Nações Unidas, do 18 de julho
como Dia Internacional Nelson Mandela, convida a uma reflexão mais do que atual
sobre o lugar e o papel de lideranças políticas para o destino da humanidade.
A trajetória do principal líder sul-africano, símbolo da luta
contra o apartheid, o regime de segregação racial, é uma inspiração
permanente para todos que buscam exemplos de pessoas que fizeram a diferença no
seu tempo e deixaram uma marca permanente no mundo.
Nelson Mandela ficou encarcerado por 27 anos nas prisões do
regime do apartheid, submetido a trabalhos forçados e isolamento durante boa
parte desse período, e ainda assim conseguiu fazer desse tempo uma etapa de
crescimento e amadurecimento político.
A leitura de suas cartas escritas ao longo dessas décadas é uma
experiência comovente e reveladora. Mostra um líder determinado a não se
deixar embrutecer, nem se perder de suas convicções e sonhos, mesmo em
condições de contínuas privações e renovados castigos.
Na prisão continuou a estudar, aprofundou seus conhecimentos
em história africana e direito internacional, mergulhou na cultura das elites
brancas da África do Sul. Aprendeu a falar o afrikaner, idioma dos colonos
brancos, para melhor se comunicar com essa população, a começar pelos
carcereiros responsáveis por sua vigilância na prisão.
Liderou as negociações que levaram ao fim do regime de
apartheid e às primeiras eleições livres com plena participação da
população negra, sendo eleito o primeiro presidente negro da África do Sul, em
1994.
Mandela se tornou o principal porta-voz do esforço de
reconciliação, sem perder o foco da necessidade de resgate e confronto da
memória dos crimes cometidos pelo regime do apartheid. Foi sob a sua
Presidência que se iniciaram os trabalhos da Comissão da Verdade e
Reconciliação, que expôs ao mundo a dimensão da brutalidade do regime a partir
do testemunho de sobreviventes e perpetradores.
Vivemos, atualmente, uma crise global de governança em meio
a qual as lideranças de plantão claramente não estão à altura dos desafios para
a necessária reconstrução institucional. Os governos e as instituições
enfrentam uma profunda crise de legitimidade e representação.
As pessoas não se reconhecem naqueles que supostamente
deveriam ser os seus representantes, responsáveis pela mediação dos conflitos e
acomodação de interesses divergentes em acordos políticos que atendam ao bem
comum.
O mundo se tornou um lugar ainda mais perigoso e instável. A
guerra na Ucrânia e as ameaças autoritárias que se fortalecem mundo afora são
alguns dos sinais de que temos muito o que aprender com Nelson Mandela.
A história e o exemplo de Madiba, como era carinhosamente
chamado por seus conterrâneos, o colocam, sem dúvida, no lugar de um líder
extraordinário em tempos extraordinários, fonte de inspiração para todos os que
acreditam na capacidade da política e do diálogo entre diferentes como
alicerces para processos sociais capazes de avançar na conquista da igualdade e
da democracia.
Esquecer nunca foi uma opção para Mandela; memória e
atribuição de responsabilidade são passos necessários para alcançar algo
parecido com justiça. Uma lição importante diante de tudo o que estamos vivendo
no Brasil.


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