Ney Matogrosso, o cantor 'que não tem tempo', chega aos
80 anos como a mais relevante matriz vocal da MPB libertária
♪ ESPECIAL
NEY MATOGROSSO 80 ANOS – “Sou um homem, sou um bicho, sou uma
mulher / ... / Sou o novo, sou o antigo, sou o que não tem tempo”. Quando
Ney Matogrosso deu voz aos versos de Mal necessário, música feita
em 1978 pelo compositor Mauro Kwitko para o cantor, o intérprete deu a si mesmo
uma definição ao mesmo vaga e precisa.
Ney Matogrosso, o cantor que não tem tempo, chega aos 80
anos neste domingo, 1º de agosto de 2021, como um artista de dimensão já eterna
no universo da música brasileira.
A voz de contralto, andrógina, sempre embaralhou noções
de masculino e feminino, de novo e antigo. Uma voz que fala por si só. E que
tem falado mais alto do que qualquer rótulo desde 1973, ano em que Ney ganhou
projeção nacional como vocalista do efêmero, mas também eterno, grupo
paulistano Secos & Molhados.
Dizer que Ney Matogrosso é um dos maiores cantores do
Brasil de todos os tempos já chega a ser redundante pela singularidade da voz e
pela honestidade na construção da obra fonográfica.
Contudo, a magnitude do intérprete extrapola a maestria
do canto. É que Ney sempre foi artista de palco. Gravou dois discos com o Secos
& Molhados e 36 álbuns na discografia solo iniciada em 1975. Muitos destes
discos venderam bem, mas a razão maior de todos eles sempre pareceu ter sido a
transposição do repertório para o palco.
Ney é artista vocacionado para a cena. Não por acaso,
trabalhou como ator de teatro antes de se decidir pela carreira de cantor –
opção quase inevitável diante da voz tamanha que se agiganta no palco porque
Ney é cantor que sempre cantou com o corpo. Foi o corpo muitas vezes seminu que
o tornou uma ameaça para o Brasil sob a ótica dos censores do país vigiado da
década de 1970.
A alta carga erótica de Ney Matogrosso sempre fascinou
admiradores e afrontou detratores na mesma medida passional. Pelo menos uma
década antes de Madonna, Ney Matogrosso pôs o sexo em pauta mesmo quando a voz
se limitava a cantar as letras das músicas.
Ney é a voz que grita o que muitos não aceitam, como se
perfilou em outro verso da já citada canção Mal necessário. Ambíguo
como cantor e como homem que nunca teve medo de expor o lado feminino, sem
nunca explorar a imagem do gay afetado (mais apto a ser tolerado pela sociedade
por se enquadrar no estereótipo), o artista sempre atraiu as mulheres, os
homossexuais e as crianças – estas sobretudo na época do Secos & Molhados –
enquanto intrigou a parcela masculina menos identificada com as liberdades de
gênero.
Extremamente coerente na condução da carreira, Ney
Matogrosso tem discografia praticamente imaculada, ainda que tenha cedido à
tentação de repetir fórmulas de sucesso em álbuns gravados na primeira metade
dos anos 1980, década em que o cantor atingiu pico de popularidade na
trajetória solo a partir do disco Ney Matogrosso (1981).
Curiosamente, foi ao se libertar inteiramente dessas
fórmulas mercadológicas, a partir da ruptura com o show e disco O
pescador de pérolas (1987), que Ney Matogrosso se fortaleceu como
artista independente. Tanto que, mesmo sem jamais ter emplacado um hit desde
então, o cantor continuou arrastando multidões para os shows, alternando
espetáculos amplificados pela pegada elétrica da banda com recitais de tom mais
próximo da música de câmara.
Desde 1975, mas sobretudo desde 1990, Ney Matogrosso vem
se impondo em cena como um artista livre e, por ter pavimentado esse caminho
independente (mesmo associado a grandes gravadoras), o cantor chega aos 80 anos
como a mais relevante matriz vocal da MPB identificada com a liberdade. Um
cantor que não tem tempo justamente por ter embaralhado o conceito de novo e de
antigo na afiada lâmina vocal.


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