Viver sob facções ativa autoritarismos que a esquerda
insiste em tratar como direitismo
Facções destroem a ordem comum; a reação autoritária
popular não é ideologia, é sobrevivência
A megaoperação no Rio produziu um fenômeno desconcertante
para a esquerda e os progressistas: apesar do número extraordinário de mortos,
a maioria da população a aprovou. A Quaest mostra que 67% dos brasileiros
consideram a operação correta e que 67% julgam que a polícia não exagerou na
força.
No Rio, o Datafolha confirma:
57% concordam com o governador que a ação foi "um sucesso", e quase
70% dizem que ela foi bem ou suficientemente bem executada. Mais decisivo: 81%
acreditam que "todos" ou "a maioria" dos mortos eram
criminosos.
Para a maioria, portanto, a operação foi legítima,
necessária e moralmente justificável, e os rótulos "chacina" e
"genocídio" não pegaram.
O progressista reage a esses números com
perplexidade moral. Ele os lê através da sua carta de valores: o morador de
favela, mesmo cooptado, é antes de tudo vítima; direitos humanos são
inegociáveis; respostas autoritárias do Estado são inadequadas; quem aprova
tais ações é cúmplice ou presa da narrativa da direita.
O apoio popular, nessa chave, só pode ser explicado por
desinformação, conservadorismo moral ou captura pelo discurso punitivista.
Sobram acusações até para o jornalismo, que estaria colaborando para justificar
a matança.
Mas essa leitura, cujo foco está na luta ideológica de soma
zero com a direita, não permite entender tudo o que está em jogo.
A sociologia política de Karen Stenner oferece um caminho
mais convincente. Em "The Authoritarian Dynamic" (2005), Stenner
demonstra que respostas autoritárias não derivam primariamente de ideologia,
mas da percepção de ameaça normativa —isto é, do sentimento de que a ordem
comum, as regras mínimas de convivência e o horizonte moral compartilhado se
desfizeram. Quando as pessoas percebem que "ninguém manda",
"ninguém obedece", que autoridades são impotentes e que as normas que
definem o certo e o errado perderam validade, a predisposição autoritária se
ativa. E, uma vez ativada, ela exige ordem, coerção, homogeneidade e
restauração da autoridade.
O ponto decisivo é que a ameaça normativa não é ideológica;
é existencial.
A vida cotidiana sob o domínio de facções e milícias
—especialmente para os pobres— constitui exatamente esse tipo de ameaça. Não se
trata apenas de medo do crime, mas da sensação de que a ordem normativa ruiu. O
Estado perdeu o monopólio das regras e da violência. A
moralidade cívica que orientava a vida comunitária —a perspectiva de que
compensa ser honesto e respeitar as regras, o valor da vida, a educação moral
dos filhos— entra em crise porque, na prática, torna-se inoperante. Vigora o
arbítrio armado. A previsibilidade some. E a distinção entre certo e errado
desaparece como critério eficaz de sobrevivência.
É difícil imaginar que a perspectiva de quem vive por anos
em territórios ocupados por facções e milícias possa ter qualquer semelhança
com a de quem julga a violência a partir do conforto de uma vida mais ou menos
previsível, segura e sob regras. A população em áreas dominadas por traficantes
não prioriza ideologia; o que a move é um impulso de sobrevivência normativa:
precisamos de alguém que restabeleça regras, que contenha os que impõem pela
força uma ordem ilegítima, brutal e imprevisível.
A repressão do Estado aparece então não como "violência
policial", mas como recuperação da ordem moral perdida e —por que não?—
como uma pequena vingança por tanta violência sofrida. Quando progressistas
denunciam em coro, como gostam, "a polícia que mais mata", quem vive
sob a bota das facções balança a cabeça e retruca: "mata ainda pouco,
deveria era matar mais". É tão difícil assim entender isso?
É isso que as pesquisas mostram —e que não cabe no
repertório explicativo da esquerda: a população aprova massivamente a operação
no Rio (67%) e apoia medidas duras contra facções (73% querem enquadrá-las como
terrorismo; 88% querem penas maiores).
A esquerda, presa à sua moldura moral, vê somente a esfera
dos princípios: direitos, garantias, limites ao Estado. O erro está no
"somente", pois não percebe, além disso, que, para boa parte da
população, a disputa real não está entre direitos humanos e punitivismo,
esquerda e direita, e sim entre uma ordem normativa em colapso e um Estado que,
ainda que de modo brutal, promete restaurá-la.
Enquanto não compreender que o apoio popular a ações como
essa deriva da experiência concreta de viver sob uma ameaça normativa total, e
não de conservadorismo moral ou manipulação discursiva, a esquerda seguirá
falando para si mesma —e desconectada do país.


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