É verdade que o voto obrigatório tem tido um efeito quase
milagroso, hora no aumento, hora na manutenção do número de cidadãos votantes.
Espera-se que isso reflita um interesse genuíno dos cidadãos em diversos
projetos para o bem comum, mas isso não é claro, tampouco fático. Ao contrário,
as pessoas estão simplesmente cumprindo o ato de votar, que é positivo em si
mesmo, mais como um dever sujeito a punição do que como um exercício
entusiástico com um direito participativo que fomenta convicção e esperança,
com um espírito mais reflexivo do que movido por interesses e sentimentos
puramente passionais, medos, ressentimentos e desconfianças.
Essa não é uma característica exclusiva do
nosso país. Parece ser uma tendência generalizada no momento histórico atual,
pelo menos no mundo governado pelo sistema democrático.
Em países ditatoriais, autocráticos e/ou fortemente
autoritários, o problema nem sequer existe, porque os cidadãos não agem como
tais, não são sujeitos políticos, vivem com um poder que não surge da sua
vontade, mas da força, e/ou realiza um ato eleitoral como um ritual vazio, onde
as propostas alternativas não competem e onde o vencedor é conhecido de
antemão.
O sujeito político não existe ali. Existe apenas uma massa
humana que, como bem diz Timothy Snyder em Nossa moléstia: lições sobre a
liberdade extraídas de um diário hospitalar (Florianópolis, Editora da
Universidade Federal de Santa Catarina – EdUFSC, 2022), vive à parte da
liderança da pólis, em condições de maior ou menor dificuldade material, em
guerra ou paz, mas sem exercer a sua liberdade.
A verdade é que as democracias estão passando por uma crise
com diferentes graus de intensidade, em todos os pontos cardeais global.
A transição da sociedade industrial para a sociedade da
informação, a revolução das comunicações, a internet e, hoje, o
rápido desenvolvimento da inteligência artificial são, em geral, fenômenos
ambivalentes que trazem benefícios, mas também provações muito complexas que
afetam particularmente as instituições democráticas.
Elas tendem a enfraquecer a representação e seus mecanismos,
gerando a ilusão de uma democracia digital, que possibilita a criação de tribos
de informação e conexão que se alimentam de suas convicções em detrimento do
pluralismo, reduzem o debate político, prestam-se a manipulações baseadas em
algoritmos que diminuem os horizontes coletivos e amplificam as percepções e
impulsos individuais, gerando humilhações públicas.
Eles potencializam o apagamento das linhas que separam os
fatos das notícias falsas, ao mesmo tempo que anulam a política como elemento
mediador entre o desejável e o possível, entre as aspirações e os recursos para
sua realização, e, por fim, a antipolítica tende a substituir a política.
Tudo isso ocorre em um contexto econômico de crescimento
lento, desigualdade crescente, aumento do crime organizado e enfraquecimento
institucional, intelectual e moral que banaliza a corrupção e desacredita a
política.
Nesse cenário, a simplificação excessiva triunfa, as
estruturas democráticas que tentam vincular o crescimento à justiça social
desaparecem, e os extremos florescem, porque, como apontou Alexis de
Tocqueville (1805-1859), a democracia é seguida não apenas por seus valores,
mas por seus resultados.
Isso torna mais compreensível que estejamos novamente tendo
um pré-eleitoral das eleições de 2026, no qual dois campos são apresentados
como extremos que não são, o que tende a polarizar o eleitorado.
Do lado da oposição fala-se num tom firme sobre segurança (a
despeito de dosimetrias escabrosas e outros absurdos) e crescimento, e isso é
atraente. Entretanto, se mantém em silêncio sobre as nostalgias autoritárias
tais como a de triste memória no 8 de janeiro de 2023 e outras patavinas que
não contam com apoio da opinião pública, o que é, no mínimo, perturbador.
Aliás, até pré-candidatura como moeda de troca já temos.
Os entusiastas desse plantel ao redor do mundo, com quem
esse ideário se dá bem, são bastante autoritários. Bolsonaro, Orbán, Abascal,
Le Pen e Milei são apenas algumas figuras abertamente autoritárias e
antiliberais.
Entre nós existe uma fervorosa Pandora, já abriram seu
receptáculo para declarar que males e destruições inevitáveis ocorrerão no país
durante seu potencial desejado governo.
Por sua vez a situação tem feito tudo o que está ao seu
alcance para melhorar, mas não demonstra claramente apreço pela moderação e
pelo respeito inabalável ao andamento processual da democracia.
Assim, acaba por carregar fardos pesados: a enteléquia
política do interesse explícito sobre democracia e suas instituições e outro os
difíceis resultados diante da herança pandêmica.
Poder-se-ia pensar que esse estado de coisas fortaleceria o
Centro político, mas, com base em experiências passadas e observando o que
acontece globalmente com formações desse tipo, é muito provável que ela
reforce, sobretudo, a presença da síndrome populista em qualquer posição da
geografia política.
A fragilidade dessa forma se materializa no campo
democrático, tanto no centro à direita quanto à esquerda. O discurso mais
programático e racional permanecerá, por ora, subordinado a esse status
quo.
A tarefa de reprojetar o campo democrático será difícil,
assim como a tarefa de recuperar a credibilidade no futuro e de nos adaptarmos
a estes tempos difíceis sem perdermos o ânimo.
Entretanto, é necessário tentar salvar o que resta de
cultura democrática para que as coisas não piorem e, se possível, melhorem.
*Ricardo Marinho é Presidente do Conselho Deliberativo da
CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e da Teia de
Saberes.


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