É preciso priorizar o desenvolvimento integral de
crianças e jovens, processo começa na chamada primeira infância
A violência é um fenômeno complexo e multifacetado, ainda
mais numa sociedade tão desigual e marcada pelo patriarcalismo escravocrata
como o Brasil. Não há uma bala de prata e várias políticas públicas devem ser
acionadas para enfrentá-la. Mas, se tivesse um único pedido ao gênio da
lâmpada, dando-me o poder de atacar a raiz mais profunda do problema,
escolheria a maior proteção e a produção de melhores oportunidades às crianças
e jovens do país. Seria sair de um presente cercado pela barbárie e a desesperança,
indo para um lugar onde as sementes do futuro se tornariam a prioridade da
agenda pública brasileira.
O público infantojuvenil brasileiro, especialmente nos
lugares mais vulneráveis, conhece a violência desde cedo. Segundo pesquisa
feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Ipea, 13 crianças e jovens
sofreram alguma forma de violência por hora em 2023, num avanço de 36,2% em
relação ao ano anterior. Muitas famílias, infelizmente, ainda são um lugar que
desde cedo produz agressões contra meninos e meninas, inclusive as de cunho
sexual, verdadeira barbárie que marca a nossa sociedade.
A este tipo de universo familiar juntam-se
também visões sociais que produzem estímulos violentos os mais variados, como a
misoginia incorporada por muitos adolescentes brasileiros. Nos últimos meses,
houve notícias de várias formas de ataque às mulheres cometidos por homens
jovens, que foram socializados por uma cultura patriarcal violenta. Eles
mataram filhas de um homem e jovens mães que têm meninos, mostrando a
irracionalidade bruta dos seres misóginos. Não precisa ser um ato do crime
organizado para entendermos a existência de uma antessala de valores trágicos
que é uma das raízes de tanta violência cometida no país.
Esse caldo de cultura não será resolvido sem políticas
públicas que priorizem o desenvolvimento integral de crianças e jovens. Tal
processo começa na chamada primeira infância, período que se inicia desde a
gestação da mãe e se prolonga até os seis anos de idade. É uma etapa da vida
fundamental para o avanço neuronal e para a produção de valores profundos, bem
como para dar os primeiros estímulos de conhecimento e sociabilidade. Tanta
relevância exige uma forte política intersetorial, tendo no mínimo uma sólida
parceria entre educação, saúde e assistência social.
A política da primeira infância alcança tanto a família como
as crianças. No primeiro caso, gerando informações aos pais para que tenham
melhores condições de cuidar dos filhos - como nas pautas da saúde e da
higiene, ou dando apoio assistencial, por exemplo -, além de garantir os
direitos humanos desde tenra idade, dado que a violência familiar é uma
característica forte em nossa sociedade. Tais políticas podem ser um caminho
educador para um padrão de família menos violento e mais propício para o desenvolvimento
infantil. Afinal, não há como semear o melhor de meninos e meninas sem ajudar a
constituir um entorno familiar e comunitário mais saudável e pacífico.
Múltiplas políticas devem ter uma atuação conjunta para
atingir as crianças mais novas e desenvolver suas potencialidades. O
acompanhamento da saúde, a garantia de condições básicas de habitabilidade (em
termos de moradia, saneamento e segurança) e os primeiros estímulos
educacionais são fundamentais para constituir indivíduos que terão mais
capacidade de aprendizado, sociabilidade mais estável e saudável,
desenvolvimento corporal e neurológico adequados, curiosidade e motivação pela
busca do conhecimento.
E aqui volta o tema das raízes da violência: é atuando sobre
os primeiros anos de vida que se pode propagar uma visão mais profunda de
resolução pacífica dos conflitos, de aceitação da diversidade, de igualdade de
gênero e racial, em suma, de respeito efetivo ao próximo. Claro que isso pode
se chocar com um ambiente familiar contraditório com tais ideias, dado o legado
histórico do patriarcalismo. Por isso que a política da primeira infância
precisa cuidar das famílias e das crianças de forma interligada.
O problema é que historicamente tratamos muito mal as
crianças e adolescentes. Isso pode ser constatado pelo atraso do processo
educacional, que só começou a se tornar universal (isto é, chegar aos mais
pobres) no final da década de 1990, ou pela ênfase na criminalização
infantojuvenil que perpassa nossa cultura, em vez de criarmos as condições para
uma sociedade melhor e menos violenta. Só muito recentemente a primeira
infância virou uma pauta do país, ainda que sem a prioridade devida, pois tal
investimento é o instrumento mais potente para mudarmos a vida das crianças e
de toda a sociedade, inclusive com um forte impacto sobre a violência.
As conquistas recentes da política da primeira infância,
vale ressaltar, se deveram a um conjunto pequeno de lideranças sociais e
políticas que se mobilizaram muito nos últimos anos. Nesta construção
bem-sucedida de agenda de políticas públicas, destaque especial precisa ser
dado ao excelente e imprescindível trabalho da Fundação Maria Cecília Souto
Vidigal, que completa 60 anos e tem lutado pelo tema desde quando ele não era
moda no debate público. Eis um exemplo de que instituições e organizações sociais
perenes, baseadas em pesquisa e parceria com gestores públicos, são essenciais
para o futuro do país.
Mas o ataque às raízes da violência vai além dos primeiros
seis anos de vida. É a partir da adolescência até a juventude que se aprofunda
a interligação desse público com a violência. São especialmente garotos pobres
e negros, que vivem em comunidades vulneráveis, que constituem o “exército”
mobilizado pelo crime organizado brasileiro. Jovens que perderam o interesse
pela escola, ou tiveram de trabalhar, ou então não conseguiram avançar em sua
trilha escolar. Trata-se, em geral, de uma situação de fracasso da atuação
governamental e é, sim, possível reverter esse quadro com um novo modelo de
políticas públicas, que possibilite projetos de vidas diferentes da
criminalidade para essa faixa etária.
Com a adolescência, começa a haver um descompasso entre o
que as políticas públicas oferecem e o que deseja a garotada. Esse fenômeno é
muito claro na política educacional, em particular a partir dos anos finais do
ensino fundamental. A desmotivação cresce, a autoestima desaba e os que vivem
em territórios mais vulneráveis ficam sem sonhos que os permitam crescer
individualmente e socialmente.
Duas soluções são centrais para a construção de um futuro
melhor à juventude, reduzindo as chances de captura pelo crime organizado. A
primeira diz respeito às políticas intersetoriais, enquanto a segunda se
relaciona com a criação de habilidades e competências para o mundo do trabalho,
numa perspectiva capaz de mostrar que há outras formas de autonomia e inserção
na vida adulta.
A primeira forma de mudar esse cenário desesperançoso passa
pela criação de um conjunto de políticas intersetoriais que abarquem os que têm
entre 12 e 18 anos. O lugar mais propício para essa integração é a escola,
especialmente se ela funcionar no tempo integral, possibilitando a articulação
entre educação, esporte, cultura e saúde em torno de projetos de vida possíveis
e desejáveis. Nesta idade, em vez de inflacionar os conteúdos disciplinares,
como se faz no Brasil, a prioridade deveria estar na motivação e engajamento
juvenis, ajudando-os a encontrar possíveis talentos e vocações.
Um segundo caminho complementar é o da ênfase, desde o final
do ensino fundamental, em habilidades e competências sociais que vão além do
saber enciclopédico das matérias e que se articulam, de alguma forma, com o
mundo do trabalho. Aprender a trabalhar em grupo, entender a imensa diversidade
de possibilidades profissionais, ganhar responsabilidades para cumprir tarefas,
saber como usar a tecnologia para resolver problemas e criar coisas novas,
entre outros aprendizados, são questões que dariam um novo sentido à formação
dos jovens em situação de vulnerabilidade, tanto mais se isso for construído
num ambiente gerador de confiança nas pessoas.
Algumas mudanças recentes apontam para esse caminho. O
programa Pé-de-Meia, que apoia financeiramente os estudantes do ensino médio
conforme um roteiro de tarefas acadêmicas, e a expansão do ensino profissional
e tecnológico, com mais recursos e possibilidades variadas de expressão, podem
ser antídotos que reduzem a atração do crime organizado. Mas é preciso muito
mais, com uma estratégia mais ampla e sistêmica de atuação da primeira infância
até a juventude, com muita intersetorialidade, articulação com a vida familiar
do público infantojuvenil e diálogo com o mundo do trabalho.
Ainda precisaremos, e muito, de boa polícia, presídios,
estratégias de inteligência contra o crime organizado e articulação federativa
no campo da segurança pública. Contudo, ao cuidarmos de nossas crianças e
jovens estaremos reduzindo vários estímulos à violência e ao crime. Os
resultados podem demorar um pouco, só que serão mais certeiros que intervenções
tópicas cujo impacto não altera a reprodução do fenômeno. Atacar a raiz do
problema é ter um projeto de futuro para o Brasil, especialmente para os seus
filhos e netos da desigualdade.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e
professor da Fundação Getulio Vargas


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