Celso Athayde, Mano Brown e Emicida já eram referência
para a favela muito antes da academia
Recentemente estive numa universidade para testemunhar um
momento histórico: o título de honoris causa concedido a meu irmão Celso
Athayde. Enquanto ele subia ao palco, passou um filme na minha cabeça. Não era
só sobre ele. Era sobre uma linhagem inteira, uma genealogia da rua, da favela
e da inteligência orgânica brasileira que, enfim, começa a ser reconhecida
pelas instituições formais.
Há algum tempo, Mano Brown recebeu honoris causa da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Depois, Emicida foi homenageado
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Três homens, três trajetórias,
três impactos profundos na cultura brasileira. E os três — cada qual numa etapa
da minha vida — foram a base da minha formação como homem preto, favelado,
politizado e orgânico.
Mano Brown foi meu primeiro professor. Sem
nunca ter me visto, me ensinou a organizar o ódio, a revolta, o senso de
injustiça. A transformar dor em consciência, raiva em direção, caos em
linguagem. Suas letras foram alfabetização emocional e política para milhares.
Ele nos deu régua, compasso e norte.
Emicida é a continuidade da minha geração. Carrega nas
palavras a herança das ruas, mas com uma capacidade extraordinária de ampliar
debates, tensionar o país e ocupar espaços onde antes não imaginávamos estar.
Produz um rap consciente e sofisticado, elabora modelos de negócio inovadores,
constrói pontes. É um dos grandes intelectuais públicos do Brasil, mesmo que o
país custe a admitir.
Athayde vem antes de todos nós. Abriu caminhos que ainda
aprendemos a percorrer. Esteve nas batalhas que impulsionaram o rap brasileiro,
participou do momento mais feroz do hip hop, quando a cultura precisava de mãos
firmes. Fundou a Central Única das Favelas, criou a primeira holding de favelas
do mundo e recebeu reconhecimento internacional ao ser premiado pelo Fórum
Econômico Mundial de Davos como empreendedor de impacto. Ele não só abriu a
porta. Construiu a casa, levantou a laje e chamou a vizinhança.
Esses três homens, que chamo de irmãos e parentes, sempre
foram doutores da vida. Já eram intelectuais orgânicos muito antes do diploma.
Já eram referência para a favela muito antes da academia. As universidades
apenas oficializam o que a rua proclamou há décadas.
Essa energia, a força dessa linhagem, está condensada no
novo trabalho do Emicida: “Emicida Racional VL3”. Ali, ele acessa algo raro:
uma literatura que nasce da dureza das quebradas, mas dialoga com a beleza dos
palácios; uma gramática sofisticada, poética; uma inteligência que costura
histórias, dores e vitórias. Uma obra que reúne três gerações de pensamento
negro, favela, filosofia e criação.
Estive na audição do disco. A cada verso, sentia as peças se
encaixando. Era impossível não lembrar como cada um desses homens moldou etapas
distintas da minha vida, como cada elo dessa corrente sustenta o momento que
vivemos agora, num tempo de rivalidade, algoritmos e desumanização acelerada.
Eles nos devolvem humanidade, profundidade, beleza e horizonte.
No meio de um país que insiste em se esquecer de si, eles
representam um Brasil que o Brasil não conhece. Um Brasil que sempre existiu,
mas permaneceu invisibilizado. Um Brasil potente, bonito, altivo, apesar das
tragédias e além delas.
Por isso, hoje digo com orgulho: tenho doutores na família.
Não porque receberam o título, mas porque sempre foram. São eles que fazem
pulsar o novo no Brasil e reformulam a imaginação do país.
Muito obrigado, meus doutores. Muito obrigado, meus irmãos.


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