Há uma sensação crescente de que existe uma casta
congressual cujo desejo maior é se blindar de qualquer controle
A Câmara Federal passa pela sua maior crise desde o início
da redemocratização. Tal problema deveria ser uma preocupação não só dos
deputados, cuja imagem junto aos eleitores está piorando, o que pode levar
muitos a não se reelegerem, mesmo com todo o dinheiro público em suas mãos. Um
Legislativo com mau desempenho e frágil legitimidade não é bom para a
democracia, que precisa de representantes que possam conversar com a sociedade,
moderar o poder presidencial e discutir os grandes temas do país. Hoje, a Câmara
está longe do sonho de Ulysses Guimarães de ser a Casa do povo.
A deterioração institucional da Câmara começou com a
presidência de Eduardo Cunha. Ele de fato iniciou a alteração do
presidencialismo de coalizão que existia até então, com predomínio do
Executivo. O balanço do poder começou a pender mais para o Congresso Nacional,
que obteve maiores poderes orçamentários e de veto ao presidente. Sua liderança
criou seguidores e muitos fãs entre os parlamentares, porém, também gerou um
caminho de fortalecimento contínuo do antirrepublicanismo da Casa, por meio do
corporativismo exacerbado e do crescimento de condutas irregulares com o
dinheiro público.
Em outras palavras, o mesmo movimento que
produziu o auge de poder dos deputados federais também os levou a um padrão de
comportamento que piora continuamente a avaliação que a sociedade tem deles. As
recentes manifestações contra a PEC da blindagem - ou da bandidagem, como disse
a voz das ruas -, as derrotas seguidas no Senado e o impulsionamento de vários
processos contra os parlamentares - algo que deve ganhar mais intensidade no
ano que vem - revelam que o modelo Eduardo Cunha se tornou um veneno para a
imagem institucional da Câmara - e talvez para a sobrevivência política de
vários deputados.
É claro que em todo esse processo a qualidade e a
experiência da liderança maior da Casa fazem diferença. Os parlamentares
continuaram ganhando poder com Rodrigo Maia, mas ele soube manter uma postura
minimamente antenada com a sociedade, especialmente quando os parlamentares
foram capazes de ser mais sensíveis aos males da pandemia do que o presidente
Jair Bolsonaro. Com Arthur Lira a Câmara ganhou ainda mais poder, e seus
membros individualmente puderam ter um orçamento secreto para chamar de seu. A
capacidade de negociação e de fazer valer acordos era o forte do então
presidente da Casa, que se manteve no posto mesmo com a mudança na Presidência
da República.
A forte e efetiva liderança de Lira, contudo, escondia os
males que já estava fazendo ao funcionamento da Câmara, seja na distribuição
secreta e nem sempre ética de recursos públicos, seja na construção de um
processo legislativo oligárquico, enfraquecendo o sentido coletivo de debate e
deliberação da Casa. De todo modo, ele elegeu facilmente seu sucessor,
colocando no posto um parlamentar pouco destacado até então. Hugo Motta fez
acordos com todos os espectros ideológicos, com o governo e com a oposição, e
deles obteve apoio, mas hoje sabemos que ele não tinha a menor ideia de como
gerenciar essa base tão ampla de poder, especialmente num momento de
polarização política, sentimento enorme de autodefesa corporativa e início da
crise do modelo criado por Cunha.
Motta não tem, definitivamente, a maturidade para liderar a
Câmara num contexto de crise de expectativa e imagem. Expectativa vinda dos
parlamentares, que querem manter seu poder orçamentário, aumentar sua
capacidade de barganha junto ao Executivo e fortalecer suas proteções em
relação à Justiça. Mas toda essa aposta no poderio dos deputados como uma casta
levou nos últimos meses a um arranhão enorme em sua imagem, gerando críticas
dos outros Poderes e de vastos setores da população, daí nascendo a expressão
que cresce nas redes sociais e nas ruas pelo país afora: inimigos do povo. O
sentimento antissistema, particularmente contra o Legislativo, está se
avolumando e pode ser maior nas urnas do que imaginam os cardeais dos
principais partidos.
Para sair dessa situação, a Câmara Federal precisa mudar de
postura e se reinventar. Talvez seja necessário entregar “algum poder” para se
fortalecer e obter maior respeitabilidade, legitimidade e, consequentemente, um
poderio renovado. Cinco pontos de reformulação são essenciais: a mudança no
processo legislativo, a maior aproximação com a sociedade, o ataque à postura
isolacionista e corporativista da Casa, a mudança na relação com as políticas
públicas (especialmente na questão das emendas) e na produção de grandes
lideranças com visão de futuro.
Um dos piores legados da gestão Eduardo Cunha foi a
deterioração no processo legislativo. Ele centralizou poder, rasgou por
diversas vezes o regimento interno, enfraqueceu as instâncias coletivas,
reduziu o tempo de debate e, o maior dos males, criou um sistema de votação
pervertido, marcado pelo sufocamento das minorias e pela falta de transparência
processual. Lira e Motta seguiram esse modelo, tomando decisões em madrugadas
cada vez mais distantes dos holofotes da democracia.
A oligarquização e o desregramento no processo legislativo
têm levado a discussões cada vez mais rápidas, rasas e, por vezes, marcadas
pela incapacidade de diálogo entre os grupos. Nesta lógica, a qualidade técnica
dos projetos tem sido colocada em segundo plano, numa Casa que tem excelentes
assessores legislativos. Os exemplos da proposta do deputado Derrite ao projeto
antifacção e da recente Lei da Dosimetria revelam textos fracos do ponto vista
jurídico e da política pública. Tal como aconteceu na PEC da Blindagem, o
resultado é a vergonha pública da Casa, que é humilhada no debate social e nas
revisões feitas pelos senadores.
Uma segunda alteração para reinventar a Câmara é sua maior
aproximação da sociedade. Discutir com setores sociais relevantes é uma forma
de construir legitimidade das decisões. Evidente que haverá visões diferentes e
conflitos, mas para isso é fundamental construir um clima tolerante e amistoso
para a conversa. Porém, os parlamentares mais radicalizados, especialmente os
novos membros da ultradireita, só querem falar com seus eleitores e afastam a
grande maioria da população que não tem um lado definido. O mundo das redes
sociais polarizadas gera uma comunicação baseada em monólogos dentro de bolhas.
Ao final, parte grande dos cidadãos não se sente ouvida ou representada.
A dificuldade de ampliar as conexões com a sociedade em sua
pluralidade se soma à defesa cada vez mais renhida do corporativismo
parlamentar, um terceiro ponto que precisa ser transformado. Por isso que o
presidente da Casa se tornou o presidente do sindicato dos deputados, e não uma
liderança que faz a ponte entre os parlamentares, a sociedade e os outros
Poderes. Há uma sensação crescente de que existe uma casta congressual cujo
desejo maior é se blindar de qualquer controle e da competição com outros que
queiram entrar no mundo da política.
É fundamental para a democracia que os deputados não se
coloquem como cidadãos com mais direitos do que os demais. Nos episódios
recentes de Zambelli e Ramagem, condenados em última instância, os
parlamentares tentaram garantir a eles direitos que ninguém no país tem, muito
menos a população mais vulnerável. Os deputados devem se colocar como
representantes do povo, e não como um grupo acima da população.
A visão de que os deputados procuram se autodefender e se
reproduzir de forma oligárquica ganha ainda mais força porque os parlamentares
criaram uma maneira quase privada de usar os recursos públicos a seu favor. Eis
um quarto ponto que merece muita atenção. Se já não bastasse a enorme fatia do
orçamento que vai para os fundos partidário e eleitoral, foi criado um modelo
no qual os congressistas (senadores incluídos aqui) dizem fazer políticas
públicas específicas para seu eleitorado por meio das emendas.
Ter uma fatia orçamentária módica que seja utilizada para
nutrir emendas individuais ou coletivas não seria um problema se o processo não
fosse marcado pela enorme magnitude desses recursos, pela falta de
transparência e rastreabilidade do dinheiro, bem como pela precariedade do
diálogo com o restante do Orçamento e com as prioridades do país. Emendas
precisariam estar conectadas a um cardápio de políticas públicas e programas
com regras impessoais e de acesso universal à população, para que pudessem, de
fato, aumentar a eficiência, a efetividade e, é triste dizer, a ética em
relação aos gastos públicos. O atual modelo emendista piora a qualidade do
Estado brasileiro, e os processos abertos pela Polícia Federal revelam parte
desse descalabro.
A Câmara, por fim, tem de pensar o país, propondo a
discussão de grandes temas e destacando suas lideranças para construir uma
visão de futuro ao Brasil, que depois possa ser discutida com o Senado e o
Executivo federal. A Constituição de 1988, obra civilizatória em nossa
trajetória histórica, foi em boa medida fruto de líderes com o pedigree de
Ulysses Guimarães. Será possível ter novamente uma Casa do povo capaz de forjar
políticos que demarquem seus mandatos para além da sua autoproteção? A resposta
a essa pergunta definirá o sucesso de nossa democracia nos próximos anos.


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