sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

PAÍS PRECISA QUE CÂMARA MUDE POSTURA

Fernando Luiz Abrucio, Valor Econômico

Há uma sensação crescente de que existe uma casta congressual cujo desejo maior é se blindar de qualquer controle

A Câmara Federal passa pela sua maior crise desde o início da redemocratização. Tal problema deveria ser uma preocupação não só dos deputados, cuja imagem junto aos eleitores está piorando, o que pode levar muitos a não se reelegerem, mesmo com todo o dinheiro público em suas mãos. Um Legislativo com mau desempenho e frágil legitimidade não é bom para a democracia, que precisa de representantes que possam conversar com a sociedade, moderar o poder presidencial e discutir os grandes temas do país. Hoje, a Câmara está longe do sonho de Ulysses Guimarães de ser a Casa do povo.

A deterioração institucional da Câmara começou com a presidência de Eduardo Cunha. Ele de fato iniciou a alteração do presidencialismo de coalizão que existia até então, com predomínio do Executivo. O balanço do poder começou a pender mais para o Congresso Nacional, que obteve maiores poderes orçamentários e de veto ao presidente. Sua liderança criou seguidores e muitos fãs entre os parlamentares, porém, também gerou um caminho de fortalecimento contínuo do antirrepublicanismo da Casa, por meio do corporativismo exacerbado e do crescimento de condutas irregulares com o dinheiro público.

Em outras palavras, o mesmo movimento que produziu o auge de poder dos deputados federais também os levou a um padrão de comportamento que piora continuamente a avaliação que a sociedade tem deles. As recentes manifestações contra a PEC da blindagem - ou da bandidagem, como disse a voz das ruas -, as derrotas seguidas no Senado e o impulsionamento de vários processos contra os parlamentares - algo que deve ganhar mais intensidade no ano que vem - revelam que o modelo Eduardo Cunha se tornou um veneno para a imagem institucional da Câmara - e talvez para a sobrevivência política de vários deputados.

É claro que em todo esse processo a qualidade e a experiência da liderança maior da Casa fazem diferença. Os parlamentares continuaram ganhando poder com Rodrigo Maia, mas ele soube manter uma postura minimamente antenada com a sociedade, especialmente quando os parlamentares foram capazes de ser mais sensíveis aos males da pandemia do que o presidente Jair Bolsonaro. Com Arthur Lira a Câmara ganhou ainda mais poder, e seus membros individualmente puderam ter um orçamento secreto para chamar de seu. A capacidade de negociação e de fazer valer acordos era o forte do então presidente da Casa, que se manteve no posto mesmo com a mudança na Presidência da República.

A forte e efetiva liderança de Lira, contudo, escondia os males que já estava fazendo ao funcionamento da Câmara, seja na distribuição secreta e nem sempre ética de recursos públicos, seja na construção de um processo legislativo oligárquico, enfraquecendo o sentido coletivo de debate e deliberação da Casa. De todo modo, ele elegeu facilmente seu sucessor, colocando no posto um parlamentar pouco destacado até então. Hugo Motta fez acordos com todos os espectros ideológicos, com o governo e com a oposição, e deles obteve apoio, mas hoje sabemos que ele não tinha a menor ideia de como gerenciar essa base tão ampla de poder, especialmente num momento de polarização política, sentimento enorme de autodefesa corporativa e início da crise do modelo criado por Cunha.

Motta não tem, definitivamente, a maturidade para liderar a Câmara num contexto de crise de expectativa e imagem. Expectativa vinda dos parlamentares, que querem manter seu poder orçamentário, aumentar sua capacidade de barganha junto ao Executivo e fortalecer suas proteções em relação à Justiça. Mas toda essa aposta no poderio dos deputados como uma casta levou nos últimos meses a um arranhão enorme em sua imagem, gerando críticas dos outros Poderes e de vastos setores da população, daí nascendo a expressão que cresce nas redes sociais e nas ruas pelo país afora: inimigos do povo. O sentimento antissistema, particularmente contra o Legislativo, está se avolumando e pode ser maior nas urnas do que imaginam os cardeais dos principais partidos.

Para sair dessa situação, a Câmara Federal precisa mudar de postura e se reinventar. Talvez seja necessário entregar “algum poder” para se fortalecer e obter maior respeitabilidade, legitimidade e, consequentemente, um poderio renovado. Cinco pontos de reformulação são essenciais: a mudança no processo legislativo, a maior aproximação com a sociedade, o ataque à postura isolacionista e corporativista da Casa, a mudança na relação com as políticas públicas (especialmente na questão das emendas) e na produção de grandes lideranças com visão de futuro.

Um dos piores legados da gestão Eduardo Cunha foi a deterioração no processo legislativo. Ele centralizou poder, rasgou por diversas vezes o regimento interno, enfraqueceu as instâncias coletivas, reduziu o tempo de debate e, o maior dos males, criou um sistema de votação pervertido, marcado pelo sufocamento das minorias e pela falta de transparência processual. Lira e Motta seguiram esse modelo, tomando decisões em madrugadas cada vez mais distantes dos holofotes da democracia.

A oligarquização e o desregramento no processo legislativo têm levado a discussões cada vez mais rápidas, rasas e, por vezes, marcadas pela incapacidade de diálogo entre os grupos. Nesta lógica, a qualidade técnica dos projetos tem sido colocada em segundo plano, numa Casa que tem excelentes assessores legislativos. Os exemplos da proposta do deputado Derrite ao projeto antifacção e da recente Lei da Dosimetria revelam textos fracos do ponto vista jurídico e da política pública. Tal como aconteceu na PEC da Blindagem, o resultado é a vergonha pública da Casa, que é humilhada no debate social e nas revisões feitas pelos senadores.

Uma segunda alteração para reinventar a Câmara é sua maior aproximação da sociedade. Discutir com setores sociais relevantes é uma forma de construir legitimidade das decisões. Evidente que haverá visões diferentes e conflitos, mas para isso é fundamental construir um clima tolerante e amistoso para a conversa. Porém, os parlamentares mais radicalizados, especialmente os novos membros da ultradireita, só querem falar com seus eleitores e afastam a grande maioria da população que não tem um lado definido. O mundo das redes sociais polarizadas gera uma comunicação baseada em monólogos dentro de bolhas. Ao final, parte grande dos cidadãos não se sente ouvida ou representada.

A dificuldade de ampliar as conexões com a sociedade em sua pluralidade se soma à defesa cada vez mais renhida do corporativismo parlamentar, um terceiro ponto que precisa ser transformado. Por isso que o presidente da Casa se tornou o presidente do sindicato dos deputados, e não uma liderança que faz a ponte entre os parlamentares, a sociedade e os outros Poderes. Há uma sensação crescente de que existe uma casta congressual cujo desejo maior é se blindar de qualquer controle e da competição com outros que queiram entrar no mundo da política.

É fundamental para a democracia que os deputados não se coloquem como cidadãos com mais direitos do que os demais. Nos episódios recentes de Zambelli e Ramagem, condenados em última instância, os parlamentares tentaram garantir a eles direitos que ninguém no país tem, muito menos a população mais vulnerável. Os deputados devem se colocar como representantes do povo, e não como um grupo acima da população.

A visão de que os deputados procuram se autodefender e se reproduzir de forma oligárquica ganha ainda mais força porque os parlamentares criaram uma maneira quase privada de usar os recursos públicos a seu favor. Eis um quarto ponto que merece muita atenção. Se já não bastasse a enorme fatia do orçamento que vai para os fundos partidário e eleitoral, foi criado um modelo no qual os congressistas (senadores incluídos aqui) dizem fazer políticas públicas específicas para seu eleitorado por meio das emendas.

Ter uma fatia orçamentária módica que seja utilizada para nutrir emendas individuais ou coletivas não seria um problema se o processo não fosse marcado pela enorme magnitude desses recursos, pela falta de transparência e rastreabilidade do dinheiro, bem como pela precariedade do diálogo com o restante do Orçamento e com as prioridades do país. Emendas precisariam estar conectadas a um cardápio de políticas públicas e programas com regras impessoais e de acesso universal à população, para que pudessem, de fato, aumentar a eficiência, a efetividade e, é triste dizer, a ética em relação aos gastos públicos. O atual modelo emendista piora a qualidade do Estado brasileiro, e os processos abertos pela Polícia Federal revelam parte desse descalabro.

A Câmara, por fim, tem de pensar o país, propondo a discussão de grandes temas e destacando suas lideranças para construir uma visão de futuro ao Brasil, que depois possa ser discutida com o Senado e o Executivo federal. A Constituição de 1988, obra civilizatória em nossa trajetória histórica, foi em boa medida fruto de líderes com o pedigree de Ulysses Guimarães. Será possível ter novamente uma Casa do povo capaz de forjar políticos que demarquem seus mandatos para além da sua autoproteção? A resposta a essa pergunta definirá o sucesso de nossa democracia nos próximos anos.

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