Entre outros motivos, porque não sei fazer mais nada
Um futuro pesquisador não encontrará uma única linha
inédita nas minhas gavetas
Minha colega Mirian
Goldenberg tirou-me as palavras da boca outro dia. Disse que, com
ou sem a IA, ela continuará a escrever. É exatamente o que eu queria dizer.
Há quase
100 anos não faço outra coisa e é difícil dispensar velhos hábitos.
Além disso, não sei fazer mais nada —nunca dirigi um carro, mal consigo trocar
uma lâmpada e não sei cozinhar nem macarrão. O tempo em que podia estar
desenvolvendo essas habilidades foi gasto lendo pessoas que escreviam bem e
tentando aprender com elas.
Assim como as crianças da
pré-história, comecei
escrevendo nas paredes, não das cavernas e com uma costela de mamute
embebida em sangue, mas nas da sala de casa mesmo, e a lápis. Logo cheguei à
máquina de escrever e, ainda quase imberbe, vi-me numa Redação de jornal. O Rio
tinha então 15 jornais diários, mas eu estava justamente no que queria: o
heroico Correio da Manhã. Foi minha introdução ao combate entre a página
impressa e o obscurantismo, no caso, vencido por este. O jornal foi destruído
pelo regime
militar na sequência do AI-5, em 1968, mas isso desenvolveria em nós,
seus órfãos, uma casca grossa que nos valeria para sempre.
Dali passei por uma quantidade de veículos e, não muito
comum na profissão, orgulho-me de nunca ter produzido uma linha em que não
acreditasse. Claro que me arrependo de muitas, mas, na época, me pareciam as
corretas. Quero crer também que haja uma coerência entre elas: desafio um
futuro pesquisador a encontrar, em milhares de artigos, crônicas e reportagens,
um elogio a um governante.
Ele também não encontrará nas gavetas uma única página que
possa chamar de "inédita", não publicada. Poemas, então, nem pensar
—por respeito aos poetas que admiro, jamais cometi um na vida. Tudo que produzi
até hoje foi escrito para sair amanhã, na semana seguinte, dali a três meses ou
no ano que vem. Tudo com destino marcado: colunas de jornal, uma reportagem
para uma revista, um livro já programado pela editora.
O problema, Mirian, será: o que fazer no Além?


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