Artigo de Fernando Gabeira
Os japoneses escolheram um ideograma para definir o ano de
2017: um símbolo gráfico que significa Norte, uma alusão aos coreanos que
frequentemente lançam seus foguetes no mar do Japão. Com um inimigo externo
desvairado como Kim Jong-un é mais fácil achar um símbolo. Trabalhando com o
alfabeto, uma revista norte-americana optou pela palavra feminismo, referência
ao furacão de denúncias de assédio sexual que sacudiu Hollywood e se desloca a
cem quilômetros por hora rumo à Casa Branca.
Tentei encontrar algo que simbolizasse o ano no Brasil.
Pensei na tornozeleira eletrônica, pois este ano estivemos de novo sob o
impacto da Operação Lava-Jato. Mas ponderei: as tornozeleiras representam os
empresários que já estão saindo da cadeia. Os políticos com foro privilegiado
ainda nem chegaram. Pensei num pé com a tornozeleira, outro com uma asinha.
Seria difícil, embora o símbolo Yin Yang da filosofia chinesa talvez desse
conta dessas energias opostas.
Deixando o território da política e olhando apenas o Brasil,
soubemos que, em 15 anos, matou-se mais no Brasil do que na Síria em guerra,
mais que em toda a América do Sul, mais do que em toda a Europa.
Há dez minutos que escrevo. Alguém deve ter sido assassinado
do primeiro parágrafo até aqui. É a média nesse princípio de século. Nesse
momento acho que a imagem da morte é uma forte competidora. Vivemos uma guerra
visceral, matadores e mortos compartilham o mesmo país, às vezes o mesmo bairro
ou a mesma cama.
Mas também deixaria de fora o turbilhão de vida que fervilha
no Brasil, gente como a professora de Janaúba, em Minas Gerais, Helley Abreu
Batista, que morreu para salvar crianças.
Desisto de achar um ideograma ou mesmo uma palavra para tudo
o que se passou. Prefiro dar umas férias à política e escrever essa crônica
como antigamente: falando de pessoas e coisas simples. Esta semana, por
exemplo, conheci um Papai Noel em Gramado. Tadeu Salvador é o seu nome. Ele é
profissional na Aldeia de Papai Noel, um complexo turístico sobre o Natal,
aberto durante todo o ano. Salvador vendia automóveis usados e sofreu três
AVCs. Mudou de profissão e está muito bem. Naquela atmosfera onde as árvores
vieram da Europa e há praças simulando nevadas, Salvador faz uma discreta
concessão à sua condição terrena: um ventilador branco, marca Mondial.
Já que cheguei ao ventilador, gostaria de tratar de alguns
objetos com que tentei me entender este ano. Chave, óculos e caneta estão
perdidos para o diálogo. Formam uma organização criminosa que não só desaparece
em conjunto, como usa armadilhas para me confundir. Se procuro os óculos
aparece apenas a chave, ou a caneta, embora esta tenda a sumir para sempre.
Em 2018, buscarei diálogo mais próximo com dois recém
chegados à minha vida: o crachá no trabalho e o cartão eletrônico que abre a
porta do quarto do hotel. O crachá falhou algumas vezes, talvez porque não
tenha visto a data da renovação. Sempre me deixava em dúvida: vai ou não vai.
Depois que ele caiu no mar, na Ilha de Algodoal, nunca mais falhou. O barqueiro
estava com medo de uma tempestade e voltou rápido ao continente. Jogou a
mochila na areia, e uma onda a inundou. Pelo menos aprendi que, se o crachá
falar, é hora de levá-lo para umas férias na praia.
Os cartões eletrônicos dos hotéis são o desafio. Chego do
trabalho tão cansado que nem sei se deixo as bolsas do equipamento ou sento na
cama, ou faço os dois ao mesmo tempo. E a porta não abre.
Não sei se em Porto Velho ou Boa Vista, lembro-me do cartão
que falhava todo dia, duas vezes em algumas ocasiões.
Em Gramado o cartão falhou. Fui à portaria e disse ao
recepcionista: o cartão falhou.
— Qual o número do seu quarto?
— 1478.
— Desculpe, mas não existe esse quarto.
Tentei uma nova combinação:
— 4178.
— Ah, aí sim — disse ele.
Pedi desculpas pelo erro. Estava acostumado com pousadas,
onde o quarto tem dois dígitos, ou hotéis de três dígitos, mas quatro dígitos,
para mim, são mais que o número de um brevíssimo quarto de hotel: é uma senha.
Por falar em senhas, talvez escreva um dia sobre como
invadiram nossas vidas. Suspeito que tenham relações com a Orcrim formada pelos
óculos, chave e caneta. Mas não tenho provas.
Espero encontrar alguém como Papai Noel no ano que vem.
Preciso, de vez em quando, de uma pausa para as pessoas e as pequenas coisas da
vida.
Em 2017, o Brasil conseguiu ser, simultaneamente, tão
intenso e tão vazio que chegamos a saudar sua passagem. A esperança é de que o
ano que entra seja melhor, ou, pelo menos, ruim de uma forma diferente.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 17/12/2017
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