Da ISTOÉ
O Ministério Público do Mato Grosso está prestes a oferecer
denúncia contra o ex-governador do Estado Silval Barbosa e outras quatro
pessoas por atos de improbidade administrativa. Seria apenas mais um processo
contra um ex-governador de Estado, preso por quase dois anos acusado de chefiar
uma organização criminosa, se não envolvesse uma das figuras mais
controvertidas da República, dono de um proeminente assento no Judiciário
brasileiro: o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes.
A denúncia tem como base uma longa investigação, concluída
pelo MP em novembro, sobre a aquisição de uma universidade particular pelo
governo do Mato Grosso durante a gestão de Silval Barbosa. ISTOÉ teve acesso ao
inquérito. Nele, o MP diz que a transação foi marcada por “práticas de ilícitos
morais administrativos”. A instituição de ensino, localizada no pequeno
município de Diamantino, foi fundada em 1999 por Gilmar Mendes e sua irmã,
Maria da Conceição Mendes França. Os dois eram sócios no negócio. No ano
seguinte, para poder assumir a Advocacia-Geral da União, Gilmar teve de
repassar sua parte na sociedade à irmã. Em 2013, Maria da Conceição vendeu a
instituição para a Unemat, a Universidade do Estado do Mato Grosso, por R$ 7,7
milhões. O governo adquiriu 100% da unidade, incluindo toda a estrutura de
salas de aula, laboratórios e biblioteca dos quatro cursos de graduação
(Direito, Administração, Educação Física e Enfermagem). E instalou ali o campus
Diamantino da Unemat.
A investigação do MP
O diabo mora nos detalhes. A compra, segundo o MP, esteve
eivada de irregularidades. Além da suspeita de superfaturamento, o negócio foi
realizado com recursos extra-orçamentários do Estado e sem autorização da
Assembleia Legislativa. A Promotoria apontou ainda falta de planejamento do
governo na hora de efetivar a compra, ao lançar luz para a ausência de
estruturação do corpo docente e para as condições precárias das instalações.
Outra particularidade da venda da universidade que chamou a atenção do
Ministério Público foi a diferença na metragem do terreno informada por Maria
da Conceição em comparação com o estudo realizado por técnicos do governo.
Segundo o MP, “a referida unidade de ensino foi previamente avaliada pela
Coordenadoria de Avaliação de Imóveis com área total 164.852,49m2 e área
construída de 5727,93m2 (4.967,93m2 edifício e 760m2 galpão). Porém, ao ofertar
a referida unidade ao Estado, a sócia diretora da UNED, Maria da Conceição
Mendes França, especificou metragem distinta, a saber: área total de 16.4852 ha
e área construída de 7.565,21m2”. Inicialmente, Maria da Conceição chegou a
oferecer o campus ao Estado por R$ 8,1 milhões, mas uma avaliação da Secretária
de Administração apontou que o campus valia R$ 7,7 milhões, valor final do
contrato. O decreto nº 1931 que selou o negócio foi assinado por Silval Barbosa
em 13/09/2013.
Procurado pela reportagem da ISTOÉ, o ministro Gilmar Mendes
confirmou que foi sócio da UNED até o ano 2000, quando assumiu a
Advocacia-Geral da União, mas disse que não teve qualquer participação na venda
da universidade. Em Brasília, no entanto, até as emas que circulam pelos
jardins dos palácios sabem que é praxe no serviço público a transferência de
propriedades para parentes somente para se enquadrar às imposições legais. Uma
mera formalidade. Na prática, em geral, os antigos donos continuam a influir
nos destinos das empresas. É o que os indícios apontam aqui nessa transação
para lá de suspeita. Embora Maria da Conceição tenha sido formalmente a
responsável legal pela celebração do negócio, é difícil crer que uma senhora de
63 anos, residente no interior do Mato Grosso, tivesse acesso direto ao
governador de seu Estado a ponto de convencê-lo a comprar uma universidade
particular deficitária, localizada em um município de apenas 21 mil habitantes.
Pior quando o governador em questão é Silval Barbosa. Em 2015, depois de ser
alvo de um mandado de busca e apreensão em sua casa, ele foi flagrado num
grampo da Polícia Federal em conversas no mínimo impróprias com Gilmar Mendes.
“Que absurdo isso. Um abraço aí de solidariedade”, afirmou o ministro do STF no
diálogo telefônico. Em 2013, o próprio Gilmar resumiu assim sua relação com
Silval: “Somos amigos de muitos anos, sempre temos conversas muito
proveitosas”. Além dos laços estreitos com o ex-governador, a influência que o
ministro Gilmar Mendes exerce até hoje no Mato Grosso é pública e notória. Numa
das discussões mais acaloradas já vistas no Plenário do Supremo, em 2009, o
ex-ministro Joaquim Barbosa usou esse argumento para atacar seu colega de Corte.
“Vossa Excelência quando se dirige a mim não está falando com os seus capangas
do Mato Grosso”, disse Barbosa.
Outra importante questão que se impõe envolvendo a
estatização da UNED é por que o Estado compraria uma universidade particular
quando o mais comum é o caminho inverso, da privatização? No momento da
aquisição da UNED, a Universidade do Estado do Mato Grosso já possuía 11 campus
e estava em processo de compra de um 12º prédio. Depois desse negócio, a Unemat
não adquiriu mais nenhuma instituição particular. Ou seja, tratou-se de uma
compra sui generis – singularíssima, obviamente. No inquérito, o próprio
Ministério Público concluiu que não havia previsão, por parte do governo, de
expandir suas atividades para a região de Diamantino, o que levanta mais
suspeitas sobre a compra. “Em nenhum momento se vislumbra um estudo a respeito
do impacto na folha de pagamentos da Unemat, notadamente, ante a necessidade de
realizar concurso público. Eis a razão pela qual o quadro de funcionários da
instituição é majoritariamente integrado por funcionários contratados
precariamente”, disse o promotor responsável pelo caso, Daniel Balan Zappia.
Chamada a prestar depoimento ao MP em agosto de 2016, a irmã
de Gilmar Mendes negou as irregularidades. Alegou que sua universidade
enfrentava dificuldades financeiras, devido à inadimplência dos alunos. Eram
cerca de 900 alunos em 2013. Na investigação, porém, o MP revelou a prática de
ilícitos. A promotoria ainda não decidiu como irá enquadrar a irmã do ministro
do Supremo, mas a principal ponta do outro lado do balcão, o ex-governador
Silval Barbosa, será denunciado com base em três artigos da Lei de Improbidade
Administrativa.
O MP não descarta a ligação entre a estatização da
universidade de Diamantino e a contratação do Instituto Brasiliense de Direito
Público (IDP) – por coincidência, de propriedade de Gilmar Mendes – para
realização de um concurso público a fim de recrutar 430 servidores à Assembleia
Legislativa do Estado. O edital também foi alvo de investigação pelo Ministério
Público. O IDP é outra incursão do ministro Gilmar Mendes no mundo acadêmico e
que também já levantou uma série de suspeitas.
Fundado em 1998 em Brasília, o IDP oferece cursos,
presenciais e à distância, de graduação, extensão, especialização e mestrado
nas áreas de Direito e Administração Pública. Gilmar Mendes é um dos
sócio-fundadores do Instituto. Desde sua fundação, a instituição de ensino está
rodeada de polêmicas. Uma delas é justamente a atuação de Mendes no IDP
enquanto ministro do STF. Fala-se em conflito ético. Entre 2003 e 2008, o IDP
fechou convênios de pelo menos R$ 1,6 milhão, incluindo com órgãos do governo
federal, sem licitação. Neste ano, a Lava Jato descobriu que o Instituto
recebeu R$ 2,1 milhões do grupo J&F, holding que controla a JBS, como
patrocínio para cinco eventos.
Holofotes
Agora enredado em mais uma suspeita, Gilmar Mendes durante
muito tempo despontava como um integrante da ala técnica do STF, junto com
outros ministros, como Celso de Mello e Ayres Britto. A formação de Gilmar
sempre foi muito respeitada. De repente, porém, não se sabe exatamente porque,
o ministro abandonou a liturgia da toga e passou a buscar a luz dos holofotes a
todo custo. Começou a opinar sobre todos os assuntos de interesse do País. E
habituou-se a manter discussões ásperas com colegas de STF. Invariavelmente
suas posições vão contra os anseios da população em acabar com a impunidade
contra políticos e poderosos. Com seus votos inflamados, Gilmar Mendes
tornou-se uma figura controversa e impopular.
Entre as polêmicas recentes do ministro, estão votos pela
soltura do empresário Eike Batista, o ex-ministro José Dirceu e o ex-deputado
Eduardo Cunha. Gilmar também destila críticas às investigações da Lava Jato,
disse que as prisões em Curitiba “se alongaram demais”, e agora, em mais um
gesto contrário aos interesses da sociedade, quer revisar um entendimento do
próprio STF que permite a execução da pena após confirmação da sentença em
segunda instância. A medida beneficiaria diretamente condenados poderosos.
Mas a decisão mais vulnerável de Gilmar envolve o empresário
Jacob Barata Filho, conhecido como o “rei do ônibus” no Rio de Janeiro. Ele foi
preso três vezes, e em todas elas, foi solto graças a habeas corpus da lavra de
Gilmar. Acontece que o ministro foi padrinho de casamento da filha de Barata em
2013. Há relação de proximidade entre investigado e juiz. Existe um problema de
ordem ética. Não aos olhos de Gilmar. Ele não vê conflito de interesse e nem se
declarou impedido de julgar os casos de Barata Filho. Diz que o fato de ser
padrinho de casamento não significa intimidade. Em outubro deste ano, durante
bate-boca acalorado com o ministro Luís Roberto Barroso, Gilmar foi
encurralado: ouviu de seu colega de Tribunal que é um juiz que “destila ódio e
muda a jurisprudência de acordo com o réu”. Barroso recomendou que Gilmar
ouvisse uma música de Chico Buarque, que diz: “a raiva é filha do medo e mãe da
covardia”. Faz sentido. Gilmar precisa ouvir mais os apelos das ruas, pois hoje
é uma das poucas unanimidades num País dividido: ele consegue provocar reações
de desagrado à direita e à esquerda.
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